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A cruzada do destino
Foto de Socorro Acioli
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Escritora e jornalista com doutorado em estudos da literatura pela Universidade Federal Fluminense. Ganhou o Prêmio Jabuti, na categoria de Literatura Infantil com o livro

A cruzada do destino

Tipo Crônica

Você sabia que Italo Calvino escreveu um livro inteiro inspirado nas cartas do tarô?, perguntou minha amiga Izabel Gurgel. Devo ter demorado uns dois minutos para dizer alguma coisa, quase sem acreditar. Eu comentava sobre o início dos meus estudos do tarô por influência de uma amiga colombiana, sobre como vejo no jogo uma força narrativa perturbadora, muito além do seu poder divinatório. Saber do interesse de um dos meus escritores favoritos sobre o tema foi uma confirmação do que eu intuía sobre os arcanos.

O livro do Calvino chama-se O Castelo dos Destinos Cruzados e chegou às minhas mãos bem rápido, presente da querida amiga Ivana Chaves. Quem narra é um homem que busca um pouso para descansar depois de uma saga de "encontros, aparições e duelos". Por sorte acha na floresta um castelo de entrada livre, com uma mesa grande e farta de alimentos e bebidas, comensais bem vestidos e em absoluto silêncio. Ele mesmo, ao sentar entre os desconhecidos, tenta falar alguma coisa mas a voz não sai. Por algum motivo a entrada no tal castelo subtrai a voz dos visitantes.

Cada um chega de uma longa jornada, desejando contar a própria vida, esse desejo quase desesperado de entender os desafios da existência narrando, narrando e narrando. A força motriz da vontade de escrever, redes sociais, mesas de bar e do divã é a mesma: necessidade de falar de si. E como fazer isso sem palavras?

Ao centro da mesa está um deck com as setenta e oito cartas do tarô. Vinte e dois arcanos maiores e os demais arcanos menores divididos em quatro naipes: ouros, paus, espadas e copas - terra, fogo, ar e água. As cartas podem trazer figuras humanas ou representações numéricas e simbólicas. No fim das contas, ali está a vida. Cada personagem escolhe suas cartas e conta suas respectivas histórias: o alquimista que vendeu a alma, o ladrão de sepulcros, o louco de amor, o escritor, dentre outros.

Foi em Bogotá que comprei meu primeiro deck, o tarô renascentista de Giovanni Vacchetta e no manuseio das cartas o entendi como um livro de páginas soltas, quase o livro de areia de Borges, aquele sem começo e sem fim. Cinco meses depois desse dia veio Italo Calvino e me fez compreender o que eu estava intuindo.

Entre os anos de 1442 e 1444 o artista italiano Bonifácio Bembo dedicou-se a pintar um deck completo de setenta e oito cartas de tarô. Espanta o fato de que duas figuras muito importantes foram perdidas: o Diabo e a Torre, fortes e temidas.

Em 1969 o escritor Italo Calvino resolveu examinar com cuidado os arcanos de Bembo e disse que o tarô é uma máquina narrativa, que nasce da alquimia medieval e guarda nas cartas os anseios da alma humana. No livro ele mostra como os arcanos podem contas as histórias de Hamlet, Rei Liar, Édipo Rei e a de cada um de nós.

Arcano vem de arca, algo que guarda e protege o mistério. A compreensão do tarô como força narrativa ajuda a entender o jogo de luz e sombra que nos conduz e confunde e a acertar o passo diante do desconhecido, "os destinos que se escancaram diante de nós, intercambiáveis e imutáveis". Quem pensa que decide, disse Calvino, não passa de um iludido. Eu concordo. Purifico as mãos com óleo de laranja, espalho os arcanos diante de mim e escolho uma carta: a Sacerdotisa. Será o tema da próxima crônica.

 

Foto do Socorro Acioli

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