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Os minutos de Cortázar
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Escritora e jornalista com doutorado em estudos da literatura pela Universidade Federal Fluminense. Ganhou o Prêmio Jabuti, na categoria de Literatura Infantil com o livro

Os minutos de Cortázar

Tipo Opinião

Talvez o segredo de sobreviver ao caos, sem negar nem sucumbir ao seu trago, seja mesmo o da observação atenta das coisas que resistem. Penso nas florestas e nos livros como exemplos de legítima solidez. Enquanto existirem, estaremos vivos ao seu redor.

Sou cria da cidade, não sei definir uma floresta. Reconheço a insignificância humana diante dos troncos centenários das árvores amazônicas, das plantas pequenas que acabaram de nascer, dos bichos e insetos de chão e de vento. Desconhecemos sua linguagem, não fazemos ideia do mistério.

Dos livros eu conheço um pouco e destaco sobre eles a autonomia invejável de criar teias invisíveis, uns com os outros, ao redor dos leitores. Recentemente um percurso por dentro de alguns textos me levou de Gonçalo M. Tavares e Gustavo Pacheco, dois excelentes autores contemporâneos, ao pensamento estoico de Sêneca e à voz de Julio Cortázar. Uma rota impossível de prever, assim como a vida.

Na primeira coluna que escreveu para a revista Época, Gustavo contou o que ouviu de Gonçalo em um evento em Guadalajara. O assunto era o grande dilema dos leitores: como escolher livros e lidar com a falta de tempo para ler. Enquanto uma outra escritora estimulava que cada um lesse o que quisesse, Gonçalo trazia o lembrete de que a vida é finita e é preciso usar bem cada dia. Isso inclui saber escolher os livros que de fato valem a pepita de ouro que chamamos irresponsavelmente de horas, como se fosse pedra bruta.

Gustavo descobriu depois que o pensamento genial de Gonçalo vinha da fonte de Sêneca. Um dos seus textos mais populares é justamente sobre a brevidade da vida. Pude ouvir Gonçalo falar disso pessoalmente alguns dias depois, no seu seminário Literatura e Imaginação promovido pela Universidade de Fortaleza.

Há uma cota de minutos exatos reservados para cada um de nós, ele dizia, com palavras mais fortes, sotaque português e certeza absoluta. Quem decide isso eu não sei, mas entender a vida como um tempo limitado e quantificado pode ser a chave. A consciência de que o tempo é um bem escasso apura o olhar para a vida. Parece que a dimensão e o valor das decisões mudam por inteiro quando cada dia vira uma chance e não uma marola que podemos atravessar impunemente.

Da vivência de um exercício criativo do Gonçalo fui parar no capítulo sete do Rayuela de Julio Cortázar que teve a gentileza de gravar leitura desse texto, facilmente encontrada na internet. Dura dois minutos e um segundo essa instrução do que é possível fazer para eternizar tão pouco tempo. Se pensarmos bem palavras são apenas traços, disse Roland Barthes. E antes que um próximo autor me puxasse para seguir a brincadeira de passar de um mundo a outro, a Floresta Amazônica começou a arder. Um amigo ligou e pediu um texto sobre isso. O que podemos fazer é usar as palavras, ele disse. Lembrou que chama tanto queima quanto convoca.

A floresta sustenta o céu. Deixar que ela queime é de uma estupidez absurda, parece que faltou tudo a essas pessoas, faltou o mínimo entendimento de humanidade. A nossa vida é breve, precisamos da imortalidade da floresta, das palavras, dos livros e dos minutos que elegemos como joias dentre anos de pedra. O incêndio da Floresta Amazônica há de ter fim. Nossos pequenos incêndios interiores, ao contrário, precisam continuar a arder e mover a literatura e o mundo. Palavras também brotam do fogo.

Foto do Socorro Acioli

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