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Quase cangaceira
Foto de Socorro Acioli
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Escritora e jornalista com doutorado em estudos da literatura pela Universidade Federal Fluminense. Ganhou o Prêmio Jabuti, na categoria de Literatura Infantil com o livro

Quase cangaceira

Tipo Crônica

Quem me contou foi minha avó. No dia 13 de junho de 1927, Lampião e seu bando invadiram a cidade de Mossoró, no Rio Grande do Norte. Divididos em quatro grupos, o rastro da desgraça era fato conhecido. Já se sabia dos ataques em Santa Cruz da Baixa Verde, Mirandiba, Cabrobró, Ouricuri, Parnamirim, o cangaço de cidade em cidade espalhando pânico. Corriam as notícias dos soldados mortos, das marcas dos canos de pistola deixados nas portas, da amizade de Lampião com o Padre Cícero e até do casamento da prima que ele tentou impedir na hora da festa.

Nos arredores de Caraúbas as famílias ficaram três dias e três noites escondidas no meio do mato, no alto das árvores e a única coisa que havia para comer era melancia. Foi assim que escaparam. O prefeito Rodolfo Fernandes, descendente dos portugueses Fernandes Pimenta, da região do Douro, conseguiu derrotar o bando, que foi forçado a fugir. Na fuga, sequestraram a idosa Maria Rocha e o senhor Antonio Gurgel, pedindo 80 contos de réis pelo resgate.

Quando essa notícia chegou às famílias que se escondiam nos matos, comendo melancia, sem tomar banho, mal dormindo, uma mocinha de doze anos chamada Sebastiana pediu ao pai que deixasse ela ir atrás do bando para se oferecer em troca da idosa. Era ela, a minha avó. Eles ainda estavam perto, pararam um tempo em Milagres, no Ceará, ela os alcançaria. Era bonita, morena de olhos verde musgo, usava ruge, sabia arrumar o cabelo com grampos e compor ondas sobre a testa com os cachos. Já podia ler e escrever, tinha decorado poemas e recitava na escola. Queria oferecer-se como cangaceira, era certo que aceitariam e deixaram a coitada da dona Maria Rocha em paz.

O pai de Sebastiana, meu bisavô Antonio Pimenta, não permitiu que tamanha loucura acontecesse. Conhecendo a filha muito bem, redobrou a vigilância, mas ela tentou fugir mesmo assim, sem sucesso. O perigo do cangaço passou. Lampião ainda rondaria pelo mundo por mais alguns anos, até ser morto em 1938, onze anos depois do acontecido.

Minha avó me contou essa história a vida inteira, desde que descobriu que eu adorava escutar suas memórias do sertão. Eu ouvi várias vezes, perguntei todos os detalhes. Depois confirmei as informações: as datas, o sequestro, a rota de Lampião. Estive em Caraúbas e vi as plantações de melancia, aquela mágica de uma fruta enorme brotando do chão, enovelada por galhos tão finos e frágeis, um paradoxo da natureza.

Em 1930, enquanto Lampião casava com Maria Bonita, minha avó casava com um filho de italiano que também tinha como sina andar pelo mundo. Um caminhoneiro de olhos azuis, que no segundo encontro carregou a moça na boleia do caminhão. Formou uma família, não entrou pro cangaço, mas aprendeu a atirar de rifle e sempre foi valente, forte, corajosa, sempre a menina de doze anos disposta a salvar a vida de alguém. Mas e se ela tivesse fugido? E se tivesse sido a Sebastiana Bonita, a rainha do cangaço, a mulher do Virgulino? Ela passou a vida pensando nisso. Eu, que continuo a vida que veio dela, também não consigo esquecer. Guardei no meu corpo a coragem, os olhos claros, a valentia e a vontade desgovernada de andar pelo mundo.

Foto do Socorro Acioli

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