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Ler Liberta
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Escritora e jornalista com doutorado em estudos da literatura pela Universidade Federal Fluminense. Ganhou o Prêmio Jabuti, na categoria de Literatura Infantil com o livro

Ler Liberta

Tipo Crônica

Foi a primeira vez que entrei em um presídio de segurança máxima. Sessenta internos do Complexo Penitenciário do Xuri, em Vila Velha, Espirito Santo, esperavam por mim.

Sabiam que eu chegaria naquela quarta-feira, três da tarde. Um ano antes, nossos destinos foram alinhavados. Meu romance A cabeça do Santo foi sugerido para o projeto Ler Liberta pelo professor Vitor Burgo. Aqueles sessenta homens que me esperavam leram o livro. Todos eles. Queriam muito falar comigo. A palavra é um percurso.

Três meses antes, recebi uma mensagem. Era o convite da professora Juliana Ferrari, idealizadora do projeto Ler Liberta da Faculdade de Direito de Vitória. Por uma recomendação do Conselho Nacional de Justiça, é possível criar programas de leitura dentro das penitenciárias. Cada livro lido abate quatro dias de reclusão. Os textos que cada interno produz sobre o livro lido é o documento que garante a remição da pena. O convite era para estar com eles. Aceitei. A palavra é uma chave.

Um dia antes tive uma conversa. Entender a remição de pena pela leitura dentro do sistema penal virou, por obra do acaso, um objeto de pesquisa dentro do meu trabalho como professora do Mestrado em Direito e Gestão de Conflitos da Unifor. Comentei com meu orientando, que também pesquisa o tema, o meu receio de não saber o que dizer a eles. "São seres humanos", ele disse e "muitos nunca foram ouvidos por ninguém". Essa conversa me deu a calma de que eu precisava. A palavra é uma luz.

Quarta-feira, três da tarde. Chegamos ao presídio, eu, professores e alunos do curso de Direito. Hora de entrar. Contei como escrevi o livro, fiz minhas graças de sempre. Eles me escutavam com atenção. Aos poucos, riam. Gargalhavam. Um deles contou que decidiu ler o Cabeça do Santo porque viu um companheiro de cela morrendo de rir e quis a mesma coisa. A palavra é alegria.

Chegou a minha vez de escutar. O Alexandre sabia o livro decorado, leu três vezes e pediu uma continuação. Outro rapaz me disse que foi o primeiro livro que leu e gostou, que seu cérebro acordou depois da leitura. Um jovem de olhos bonitos disse que vai sair da prisão em alguns meses, vai levar o seu filho para ver o filme do Cabeça do Santo, vai dizer que me conheceu e sabe que o menino vai ter orgulho dele. Foram me agradecendo, falando como foi bom reaprender o sonho, igual ao Samuel, protagonista. A palavra é um alívio.

Por fim, o Gilson olhou nos meus olhos e fez três perguntas: por que eu aceitei estar ali; se eu pensava que eles são monstros e como eu estava me sentindo no presídio. Respondi que fui porque queria conhecê-los. Que eu não via monstros, via sessenta homens que leram meu livro e só isso me interessava. E que eu estava muito feliz, à vontade, em paz. Choramos, eu e eles. A palavra é uma mágica.

É só isso: somos humanos. Estar vivo é permanecer constantemente no fio entre o bem e o mal. Oscilamos de acordo com a sorte e a fé de cada vida. Fomos felizes naquelas horas. Eles me deram consciência. Sentido. Eu deixei com eles minhas palavras. E a palavra é a segunda maior força do mundo. A primeira é o amor. A literatura é a ponte entre uma e outra.

Foto do Socorro Acioli

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