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O que sustenta os sonhos
Foto de Socorro Acioli
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Escritora e jornalista com doutorado em estudos da literatura pela Universidade Federal Fluminense. Ganhou o Prêmio Jabuti, na categoria de Literatura Infantil com o livro

O que sustenta os sonhos

Duas coisas ficaram muito claras para todos nós no último mês: o que não suportamos mais e o que nos sustenta, em todos os níveis. É a partir dessa clareza que as vidas serão refeitas, para quem tiver coragem. Não há muito como romantizar uma pandemia, sejamos razoáveis. Mas precisamos resistir, prosseguir e a única saída para isso é alimentar o que sustenta os nossos sonhos.

Para muitos é na Literatura que está o sol de cada dia. Por isso combinei um clube de leitura virtual com meus alunos uma vez por semana, para mantermos a sanidade. Comecei por Júlio Cortázar por causa de um sonho. Eu perguntava sua opinião sobre isso tudo que está acontecendo e ele respondia: "não vamos entender nada por enquanto, não adianta". Eu concordo com ele.

Escolhi Casa tomada: um casal de irmãos mora em uma casa antiga, arcaica, onde viveram seus antepassados, onde cabem oito pessoas mas restaram Irene e o narrador, que sequer diz o próprio nome. Conduzem a vida obedecendo a uma rotina ajustada de limpeza da casa, preparo de refeições, leitura e tricô, coleção de selos, alimentação moderada, alguma conversa em tom baixo. O narrador é gentil o suficiente para detalhar a planta baixa da residência antes de avisar à Irene e a nós, leitores, que algo horrível aconteceu: tomaram a casa. Não é mais possível transitar por todos os cômodos. Ao final os irmãos são expulsos pela força invisível que tomou tudo o que foi deles desde sempre, jogam a chave no bueiro e vão embora.

Fortaleza também foi tomada. A Terra inteira. Está tão vazia quanto a casa do conto. Já sabemos o que causou isso, chamamos pelo nome, mas não conseguimos ver o famoso antagonista invisível, a palavra mais pronunciada nas bocas de todo planeta. Estamos espremidos no canto que nos cabe, que foi permitido.

A conversa sobre o conto aconteceu horas antes de um dos terríveis pronunciamentos oficiais. Das varandas e janelas, a rua inteira fazia barulho para dizer que a vida vale muito e que vamos continuar em casa, sim. Senti a força de todos, senti esperança, até ser tomada de susto pelo ato violento de um vizinho discordante que soltou uma bomba dentro do prédio. Um explosivo perto dos carros. Uma ameaça à liberdade que exercíamos sem sair dos nossos apartamentos.

Essa bomba me lembrou que são dois os antagonistas. O invisível é o vírus. O visível, vocês sabem. Ele está despertando o ódio e empobrecendo as almas, ensinando a rir de uma doença, a desdenhar do poder de morte e dor de uma catástrofe. A pólvora dos seus seguidores tem cheiro de ódio e desumanidade.

Uma aluna lembrou que, na Narratologia, o antagonista sempre surge para fazer o protagonista evoluir de alguma maneira, para que sua vida melhore e me perguntou qual o sentido positivo possível para essa pandemia na nossa narrativa coletiva. Não arrisquei teoria alguma, detesto passar vergonha. "Não vamos entender nada por enquanto, não adianta", eu disse, sem revelar quem me ensinou. A única coisa possível no momento é sustentar os sonhos para sobreviver, dia a dia. Cada um sabe dos seus.

Foto do Socorro Acioli

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