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Histórias que precisam ser contadas
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Tânia Alves é formada em jornalismo pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Começou no O PCeará e Política. Foi ombudsman do ornal por três mandatos (2015, 2016 e 2017). Atualmente, é coordenadora de Jornalismo..

Histórias que precisam ser contadas

Tipo Opinião

O negro que gostava de andar de casa em casa, dizendo que estava com fome, contava a história para quem quisesse ouvir: um dia foi chamado pelo rapaz para dentro do curral. Ingênuo, com espírito de criança, e confiando no jovem ele foi. Saiu de lá, correndo, gritando de dor. O rapaz estava ajudando a marcar o gado com as iniciais da família. Colocou a marca no fogo e, enganando o negro, encostou o ferrete quente de metal com as letras iniciais do nome da família nas costas do preto. Nos anos de 1970, todo mundo na cidade conhecia a história.
O menino negro baixinho vivia como agregado de uma família na Cidade. Fazia os mandados necessário, cuidava do gado. Ele causava admiração nas outras crianças pelas pernas velozes que conseguia driblar os adversários nas brincadeiras de bandeira no terreiro de casa. A história por trás daquele menino alegre, que poderia ser um atleta, é que ao deixar de descumprir uma tarefa apanhava de chicote. E para não fugir do patrão, era encostado em um tronco de árvore sem poder se mexer para receber o castigo. Gritava pedindo clemência ao padrinho, que parecia ter ouvidos moucos. Era na década de 1970. 

A secretária da educação que é bisneta de escrava e filha de pai preto recebeu uma carta anônima desaforada em que era chamada de negrinha e que não merecia ocupar aquele posto. Foi um choque, pois mesmo sem assinatura deu para entender que era de alguém que estava por perto. Decidiu enterrar o assunto embora já não fosse mais anos 70.
Em um Carnaval, a mulher de olhos azuis e cabelos encaracolados foi apresentada a um senhor. O marido dela informou de quem ela era filha, um pequeno comerciante da cidade que já havia morrido. O homem respondeu: “Conheci seu pai. Ele era negro, mas era gente de bem”. Foi um choque. Ela ficou muda. Compreendeu pela primeira vez o racismo, mas não retrucou.
Estas são histórias que precisam ser contadas, para deixar de existir. Me lembro de como elas eram narradas de calçada em calçada sem que a gente percebesse a gravidade do ocorrido. Brincadeira, castigo para correção, questão política eram as desculpas. Ao ver na TV a morte de João Alberto Freitas diante das câmeras dos celulares no supermercado Carrefour, em Porto Alegre, me veio à mente estes episódios que carrego na vida. Vejo como a gente ainda precisa crescer para realmente transformar este País em mais igual e de como eu ainda necessito aprender sobre como lutar contra o racismo.

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