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A guerra e a fé da minha tia
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Tânia Alves é formada em jornalismo pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Começou no O PCeará e Política. Foi ombudsman do ornal por três mandatos (2015, 2016 e 2017). Atualmente, é coordenadora de Jornalismo..

A guerra e a fé da minha tia

Minha tia desenvolveu medo do barulho de avião por associa-lo à guerra. Pela fé entendeu que ela não mais aconteceria. Fico pensando de como ela reagiria ao acompanhar agora a Guerra da Ucrânia. Só tenho uma certeza: ela manteria as rezas
Tipo Crônica
Mulheres e crianças são a maioria dos refugiados (Foto:  Reprodução / Ministério do Interior da República Eslovaca)
Foto: Reprodução / Ministério do Interior da República Eslovaca Mulheres e crianças são a maioria dos refugiados

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Minha tia dizia que tinha medo de guerra. Aliás, o receio era do que ouvia. Escutava o pai falar sobre bombardeios que ele já tinha escutado de um parente mais velho, lá pelas quênios de Crateús e ficava arrepiada. Pela história oral ouviu falar que comunistas vinham lá do outro lado do mundo com aviões cheios de bombas para destruir as cidades e levar todos os filhos homens para os campos de batalhas. Nesse momento lembrava dos sobrinhos.

Também dizia, como tinha aprendido, que por causa da guerra os comunistas poderiam tomar conta do mundo. Então não haveria mais pai ou mãe. Os filhos seriam levados para internatos e nunca mais saberiam dos parentes, jamais poderiam conversar com eles, receber um abraço ou um carinho.

Dizia que as crianças sentiriam saudades até mesmo das surras que levavam quando iam tomar banho nos rios em época de inverno sem o consentimento dos pais. Seriam do mundo e nunca conheceriam a religião. Por causa daquelas narrativas ouvidas ao longo da vida, associava o barulho de aviões que em raras ocasiões cruzavam os céus da comunidade isolada onde morada com o início de um conflito ou comunismo. Se estava no quintal estendendo roupa, ou no cacimbão buscando água para encher os potes deixava tudo para trás e corria para casa com as pernas bambas de tanto pavor. Nessa ocasião, se apegava a Nossa Senhora.

Dizia que a única maneira de acabar com aquele sofrimento seria rezar o terço, que ela sempre carregava no pescoço como enfeite e também para se amparar em caso de algum aperreio de última hora. Repetia aquilo que tinha aprendido quando menina: que Nossa Senhora havia aparecido em Fátima, em Portugal, e mandado rezar o terço para a guerra acabar. A partir daí, a Guerra acabou.
Com o tempo, já velhinha, minha tia se acostumou com os tempos de paz. O barulho de avião nos céus da cidade já não a deixava apreensiva. Tinha compreendido que as aeronaves também traziam coisas boas como, as cartas com notícias dos irmãos  que moravam longe ou facilitavam a chegada dos sobrinhos para as visitas em época de férias.

Entendeu que no mundo já não cabia a guerra. A terra tinha se livrado dela para nunca mais voltar. Na sua fé, continuava creditando os tempos de paz ao terço que rezava todos os dias numa mantra que parecia repetitiva, mas a deixava calma e conectada com o infinito.

Tenho pensado muito na minha tia agora com o desenrolar da guerra da Ucrânia. Como ela reagiria em assistir pela televisão os bombardeios e os sofrimentos das crianças levadas em trens sem a companhia dos pais. Perdendo a infância em histórias insensatas criadas pelo poder. Como ela reagiria quando visse que os homens ainda são capazes de criar lutas sem sentido e por isso receber apoio, engajamento e popularidade. Imagino que, apesar de tudo, manteria e fé continuaria a rezar o terço todos os dias.

 

Foto do Tânia Alves

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