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De si, para o todo
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Autora dos romances Turismo para cegos e Em plena luz, dentre outros títulos. É também fotógrafa e professora da Universidade Federal do Ceará. Adora gatos, viagens e acredita cada vez mais no poder da arte.

De si, para o todo

Tipo Crônica

Nos últimos tempos, observei alguns ataques voltados para quem - às vezes mais com o exemplo do que com palavras - busca transmitir otimismo, paz. Para além de um debate sobre atitudes conformistas ou revoltadas, noto que as pessoas de vida zen, desambiciosas, ostentam duas características que devem potencializar a irritação dos exasperados: 1) uma espécie de equilíbrio que faz com que pareçam sempre inabaláveis; 2) um ar meio lunático, pelo qual costumam ser julgadas como improdutivas. De fato, comparada à vida de gente "comum", a existência dos indivíduos zen lembra um largo espaço sem mobília, silencioso, limpo, tendo como atrativo o próprio vazio.

A desaceleração dos gestos e o constante questionamento sobre se algo é ou não essencial (um modo de pensar no útil que é bem mais profundo) fazem com que essas pessoas sejam extremamente concentradas, ao contrário do que seu semblante sugere. Mas é que o foco - quando não se confunde com controle ou preocupação - significa tranquilidade. Você finalmente achou o eixo (estava tão perto!) e não precisa mais se inquietar; você se mantém alerta simplesmente porque, assim, a vida acontece em sua forma mais abundante.

Se existe uma ilusão nos modos de existência, creio que ela está sobretudo em associar a riqueza a algo externo, exibível ou concreto - e, desde muito cedo, incentivam esse tipo de ambição como se fosse a máxima qualidade, a régua do valor real. Imagino o que seria de nós se, enquanto sociedade, tivessem-nos instruído a enxergar no outro, em vez de um juiz ou rival que nos oprime, vigia ou ultrapassa, somente alguém para a partilha de experiências.

Se nos tivessem dito que cada jornada é única e incomparável, e por isso a inveja é uma reação absurda; a ambição mesma só se justifica como um crescimento pessoal - jamais como uma concorrência ou disputa. Se, assim nos ensinando a olhar para dentro (onde achamos nossas autênticas predisposições, nossos talentos - que estão sempre em torno do que dá prazer), depois nos convidassem a olhar para fora e encontrar, no mundo, o que melhor corresponde à nossa personalidade, em termos de lugar, ambiente, profissão... Se todo esse processo fosse visto de maneira fácil, e não como uma "luta" - ou seja, se os aspectos materiais não fossem circunstâncias punitivas ou injustas -, estou certa de que a vida zen não seria tida como um luxo, não haveria quem a criticasse por parecer uma opção de alienados. Ao contrário, quem se torna alheio, apartado do fundamento da existência, é aquele que se vê apenas enquanto peça, obediente e eficaz, girando no motor social.

O indivíduo zen, debruçado sobre o interno, conecta-se com o universo, que é sempre maior do que qualquer sociedade. É, na verdade, o absoluto, o Todo - mas quem chega tão perto dessa fusão anti-ego acaba rotulado como individualista pelos que, preocupados em fabricar rótulos, cultivam a ignorância sob uma capa retórica.

Foto do Tércia Montenegro

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