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Ecologia da presença
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Autora dos romances Turismo para cegos e Em plena luz, dentre outros títulos. É também fotógrafa e professora da Universidade Federal do Ceará. Adora gatos, viagens e acredita cada vez mais no poder da arte.

Ecologia da presença

Tipo Crônica

Tenho feito estudos sobre o teatro, refletindo sobre as mudanças que o isolamento social trouxe para este setor. Assim como outras artes do espetáculo, o teatro por princípio compartilha de um tempo-lugar com seu público - aspecto que se altera ferozmente através de exibições on-line. Uma parte das investigações publiquei na coluna que mantenho no jornal curitibano Rascunho; é o meu texto para este espaço durante o mês de setembro: um(a) leitor(a) curioso(a) pode depois conferir no site. Agora, entretanto, gostaria de apenas roçar o tema, trazendo passagens do livro de Hans-Thiers Lehmann, "Teatro Pós-dramático" (Cosac Naify, 2007).

O primeiro trecho que ressalto surge quando o autor menciona um "nicho ecológico" instaurado pela via da percepção, "o campo de uma intersubjetividade que põe em jogo a interação entre os corpos, uma relação de encontro comum em uma situação social que constitui um outro 'tempo' entre sujeitos". E logo adiante afirma: "tanto na atitude ética quanto no cerne da afetividade em geral, encontra-se a indisfarçável situação da 'presença' do outro"(p.366). Naturalmente, o(a) leitor(a) percebe que aqui se fala tanto de teatro quanto de vida.

De fato, por mais que louvemos as vantagens tecnológicas que nos aproximam uns dos outros e expandem possibilidades comunicativas, há um lado pernicioso aí. Por que precisamos mesmo fazer aquele curso extra? Será por uma real necessidade ou prazer? Ou ativamos o hábito compulsivo de agir sempre mais e mais, porque o mercado exige, ou um modismo obriga, ou ainda porque essa é uma forma de fugir (dos pensamentos, do vazio rotineiro, das horas livres)? Ser workaholic muitas vezes significa deixar de existir e passar a funcionar, meramente.

A esse respeito, Lehmann é incisivo: "Se os gestos da interrupção reflexiva são considerados como algo antiquado e dispensável em relação ao registro sem demora das informações, a perspicácia versada tecnologicamente ameaça se converter em ideologia, na apoteose do funcionamento cego" (p.390).

Estão em jogo questões éticas, teóricas e sobretudo psíquicas, nesses ambientes computadorizados impostos na quarentena. O efeito zap - que nos leva a mudar o foco de atenção desvairadamente, considerando um fragmento qualquer como unidade informativa (e assim ninguém mais contempla uma foto, por exemplo, ou lê um texto inteiro na internet) - constrói a ilusão de que estamos "ganhando tempo". Entretanto, adquirimos um vício ansioso, ignorando o que permanece inalcançável por baixo dessa mimese eletrônica.

Embora eu esteja vendo espetáculos on-line, dando aulas remotas e fazendo tudo o que ficou obrigatório por força das circunstâncias, não esqueço que são paliativos. Bom mesmo é mergulhar numa experiência lenta de teatro ou outro tipo de convívio - uma troca física que lembre: eis a presença natural. Uma ecologia arcaica, irrepetível.

Foto do Tércia Montenegro

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