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Sombra insignificante
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Autora dos romances Turismo para cegos e Em plena luz, dentre outros títulos. É também fotógrafa e professora da Universidade Federal do Ceará. Adora gatos, viagens e acredita cada vez mais no poder da arte.

Sombra insignificante

Criaturas que vivem de oportunismo e autopromoção não são novidade. Mas em algumas plataformas a marca de um determinado número de "seguidores" pode levar pessoas a acreditar que exercem um tipo de liderança ou até missão, por mais extravagante que isso pareça. Os ingênuos da virtualidade talvez creiam que suas palavras e postagens têm grande importância na vida alheia - mas bastaria reparar no quanto o seu modelo é idêntico ao de outras dezenas de nomes que circulam por canais semelhantes. A constatação é cruel, porém óbvia: quase toda a gente se preocupa mais em mostrar, e menos em ser, de fato. Repetem maneirismos descartáveis, e sua própria identidade dura na medida desse aplauso. Vale uma curtida de quem gastou poucos segundos saltando entre conteúdos.

É provável que eu seja uma idealista, por achar que ainda se deve aplicar lentidão, coerência e profundidade nos atos, sobretudo nos criativos, e que tal conjunto deve ser o seu motivo elementar - mas pelo menos não estou sozinha. Leio Frantumaglia e encontro, no meio de cartas, depoimentos e entrevistas da autora italiana oculta sob o nome de Elena Ferrante, uma passagem em reação ao brilho volátil que tantos perseguem (mania traduzida numa espécie de sentença como "Fale sobre mim, mesmo que não saiba o que eu faço"). O trecho é o seguinte:

"A fama do autor, ou melhor dizendo, da persona do autor que entra em cena graças à mídia, é um suporte fundamental para o livro? (...) Acho que os leitores de um bom livro esperam no máximo que o autor de um bom livro continue a trabalhar com consciência e produza outros bons livros. Acho, enfim, que até os autores dos clássicos são apenas um amontoado de letras mortas ao lado da vida que arde em suas páginas assim que começamos a lê-las. Só isso. Para usar uma fórmula: até Tolstói é uma sombra insignificante quando sai para passear com Anna Karenina." (p.44)

O fato de que alguém pareça mais cativante do que sua literatura é um alerta que não se pode desconsiderar. "O ativismo promocional dos autores tende a anular cada vez mais as obras e a necessidade de lê-las. Em muitos casos, o nome de quem escreveu, sua imagem e suas opiniões são muito mais conhecidos do que seus textos", acrescenta Ferrante, páginas à frente. Esse mecanismo de troca é um fenômeno que afeta todas as linguagens, mas no caso da literatura parece bem mais evidente porque o empenho de ler um livro realmente passou a ser substituído por um ligeiro reconhecimento da autoria. E pior: há autores que chegam a se contentar com essa fama-pelo-rótulo, acham que é assim mesmo - a propaganda foi eficaz, o livro vendeu, não importa se vai mofar numa prateleira. Suspeito que haja inclusive quem prefira leitores que compram, mas não leem: a eles, jamais será preciso apresentar uma qualidade de texto.

Foto do Tércia Montenegro

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