Autora dos romances Turismo para cegos e Em plena luz, dentre outros títulos. É também fotógrafa e professora da Universidade Federal do Ceará. Adora gatos, viagens e acredita cada vez mais no poder da arte.
Autora dos romances Turismo para cegos e Em plena luz, dentre outros títulos. É também fotógrafa e professora da Universidade Federal do Ceará. Adora gatos, viagens e acredita cada vez mais no poder da arte.
"Há pouco tempo retirei-me a minha casa, decidido, na medida do possível, a não fazer outra coisa senão passar em repouso, e no isolamento, o pouco de vida que me resta: parecia-me impossível fazer maior favor a meu espírito que deixá-lo em plena ociosidade, conversando consigo mesmo."
A passagem acima, integrante da vasta obra do francês Montaigne, poderia ter sido escrita - ou pensada, com palavras mais ou menos equivalentes - por alguns de nós, no começo de 2020. O confinamento, para quem teve o privilégio de passá-lo em segurança, com emprego garantido, um teto próprio e tranquilo, talvez tenha indicado a chance de se recolher, buscar o crescimento íntimo.
Montaigne passa a maior parte dos seus Ensaios interrogando as evidências, os conhecimentos estabelecidos, as sabedorias institucionais ou reveladas. O exame de seu cotidiano à primeira vista poderia significar apenas um exercício ególatra - e, se assim fosse, ainda haveria grande valor histórico no texto desse homem que, escrevendo durante o século XVI, impôs sua individualidade de modo tão inovador. Hoje, ao contrário, abundam as exibições de egos, e nada há de original nisso. Mas o mais importante é que Montaigne jogou com o ambíguo de uma forma difícil de imitar. Quando ele diz, por exemplo: "Ouso não só falar de mim, como falar só de mim", a afirmação é uma bela armadilha.
Montaigne, no seu uso privado da literatura, atinge o universal dos assuntos.
Raramente a atual reclusão pela pandemia - reclusão que paradoxalmente envolveu comunicação assídua com o resto do mundo, através dos mecanismos virtuais - pôde fornecer esse salto de sabedoria.
A leitura dos Ensaios mostra como a época antiga às vezes oferece pensamentos mais avançados que os contemporâneos. Com Montaigne, o termo "medieval" perde suas associações negativas. Há muitíssimo aprendizado neste autor - inclusive a respeito do tempo, da paciência que é uma espécie de fé, renovação. Desde março esperamos por 2021 como um símbolo que exorcize tudo de ruim que enfrentamos. Mas a transformação não virá necessariamente com a mudança de calendário; muito mais do que uma data específica, o ano novo parece na verdade um ciclo, um período pós-catástrofe que deve surgir aos poucos, insinuando-se como grãos na ampulheta, a princípio despercebidos - mas em algum momento vamos constatar sua inegável presença e dizer: Aí está. Passou a ameaça.
Nesse instante, abriremos a janela de outra maneira, sem medo. Trocaremos então Montaigne por Cervantes para voltar à aventura do mundo, quixotesca. E diremos, com Sancho Pança: "(...) que maior desdita pode ser que aquela que aguarda o tempo que a consuma e morte que a acabe? Se esta nossa desgraça fosse daquelas que com um bom par de emplastros se curam, já não seria tão mau". Avancemos!
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