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Patriarcal
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Autora dos romances Turismo para cegos e Em plena luz, dentre outros títulos. É também fotógrafa e professora da Universidade Federal do Ceará. Adora gatos, viagens e acredita cada vez mais no poder da arte.

Patriarcal

Eis um livro valioso: "A Criação do Patriarcado", da historiadora Gerda Lerner. Publicado no Brasil em edição da Cultrix, com prefácio de Lola Aronovich, essa história da opressão das mulheres pelos homens é obra de profunda lucidez científica. Longe de cair num vitimismo passional, a pesquisa mostra como a subordinação das mulheres foi resultado de um processo que, ao longo de 2.500 anos aproximadamente, envolveu relações econômicas e governamentais, além de mudanças de cosmogonias que fizeram com que imperassem divindades masculinas.

Aprendi muitíssimo com a leitura, e ressalto aqui apenas um aspecto: a falta de evidências antropológicas que atestem um matriarcado pré-histórico. A autora explica: "Penso que só podemos falar em matriarcado quando as mulheres têm poder sobre os homens, não ao lado deles; quando esse poder inclui o domínio público e as relações exteriores, e quando as mulheres tomam decisões essenciais não apenas para seus parentes, mas para a comunidade. (...) esse poder deveria incluir a definição de valores e sistemas explicativos da sociedade, bem como a definição e controle do comportamento sexual masculino. Pode-se observar que defino matriarcado como a imagem refletida do patriarcado. Segundo essa definição, eu concluiria que nunca existiu uma sociedade matriarcal." (p.59)

Todos os indícios de épocas que celebraram a fecundidade e a força da mulher, todas as 30 mil esculturas da Deusa-mãe não são o bastante para uma certeza histórica desse teor. Ou seja: não houve qualquer período em que as mulheres detiveram o poder político, econômico e, sobretudo, o poder de posse sobre o corpo dos homens, regulando sua sexualidade e liberdade. Gerda Lerner observa que a criação de "mitos compensatórios" não facilita a vida das mulheres contemporâneas, e a atitude mais inteligente é "abandonar a busca por um passado empoderador", para se concentrar no que ela chama de enigma central: "a participação da mulher na construção do sistema que a subjuga" (p.65).

Parece de fato incompreensível que as próprias mulheres propaguem a ideologia patriarcal. Uma razão, entretanto, pode estar numa alternativa de domínio - porque, se inexistiu um matriarcado no mundo, isso não indica ausência de agressividade por parte das mulheres. Nós, tanto quanto os homens, somos capazes de oprimir - a diferença é que jamais fomos estimuladas a isso, nem premiadas por um juízo que costume ignorar nossas maldades. Desse modo, criaturas com ganas de controlar, cercear e punir quase sempre cultivam sua sordidez na esteira do machismo, tendo como alvo outras mulheres. Textualmente, inclusive, a identificação é imediata; utilizam o mesmo léxico opressor de um homem, revelando um exercício de poder por imitação. São vítimas brincando de carrasco, sentindo um prazer postiço. São pobres alienadas que direcionam seu sofrimento para o lado errado. Só quem ganha, no final, é o patriarcado.

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