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Memorável
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Autora dos romances Turismo para cegos e Em plena luz, dentre outros títulos. É também fotógrafa e professora da Universidade Federal do Ceará. Adora gatos, viagens e acredita cada vez mais no poder da arte.

Memorável

Uma amiga outro dia comentava como a sua analista é atenta, capaz de pontuar coisas ditas e, mais adiante, distraidamente repetidas (embora por algum motivo psíquico). Eu então reparei que, no geral, não prezo pela boa memória e até me assusto com quem tem essa habilidade. Sou o tipo de pessoa para quem você pode contar um segredo, porque provavelmente logo o esquecerei.

Costumo apagar fatos inteiros da cabeça; nomes ou rostos de indivíduos com quem anos atrás conversava desaparecem não só do meu convívio, mas também da lembrança, como se jamais tivessem existido. Talvez eu não estimule o meu próprio hipocampo - região do cérebro responsável pelas recordações - mas, se isso significa livrar-me de âncoras mentais em direção a uma maior liberdade, considero uma vantagem. Lógico, a memória é fundamental para a construção de um aprendizado e de um acervo biográfico, pessoal.

Entretanto, em certas ocasiões ela pode ser prejudicial? Sem dúvida. Cito duas obras que exploram essa perspectiva: o conto "Funes, el memorioso", de Jorge Luis Borges, e o filme "Brilho eterno de uma mente sem lembranças", dirigido por Michel Gondry. Nas duas histórias, vemos personagens atormentados por temas que retornam a seus pensamentos.

Dados e informações insistem em martelar o lugar mais íntimo possível - a mente -, repetindo dores ou conhecimentos irrelevantes (mas que também viram um grande tormento, pelo acúmulo armazenado). Quem nunca sonhou com um dispositivo ou ritual capaz de limpar o passado, acionando uma espécie de formatação do sistema que reiniciasse o nosso cérebro a partir de certo momento, deixando para trás todo o lixo que travava o seu funcionamento? Creio que no futuro essa ideia será bastante viável pela tecnologia. Por enquanto, uma tarefa similar depende de meditação e, claro, também do temperamento.

Eu gosto da sensação de largar o tempo, deixar os episódios como se eles fossem uma pele extra, que já não me serve. Óbvio que carrego vários fatos comigo: são acessórios de identidade - mas seleciono os importantes e alegres. Quero andar pela vida num estado muito próximo ao da nudez, coberta apenas por experiências leves, plumas, véus coloridos, pulseiras e anéis transparentes, tecidos que esvoaçam.

A memória excessiva me parece um fardo, cheia de laços inúteis atrapalhando os passos e até fazendo tropeçar. A memória afinal (com exceção dos casos que envolvem doenças) é trabalho de triagem; trata-se de escolher aquilo que mantemos. Você decide se põe os fantasmas para flutuar.

Foto do Tércia Montenegro

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