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Nudes do Nietzsche
Foto de Tércia Montenegro
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Autora dos romances Turismo para cegos e Em plena luz, dentre outros títulos. É também fotógrafa e professora da Universidade Federal do Ceará. Adora gatos, viagens e acredita cada vez mais no poder da arte.

Nudes do Nietzsche

Em dezembro do ano passado, uma sutil polêmica (quase nada, se compararmos aos temas da política) envolveu o filósofo Friedrich Nietzsche, morto há mais de um século. Uma foto ressuscitada pelas redes sociais estimulou farta discussão. Nela, o autor de "Assim falou Zaratustra" aparecia junto à psicanalista Lou Andreas-Salomé e ao poeta Paul Rée, os três nus e um pouco solenes, principalmente os homens (talvez porque para eles fosse mais tenso manter a pose). Entre os internautas alvoroçados, houve destaque para os que argumentavam que a imagem, falsa, desonrava o legado de Nietzsche.

Realmente não sei se a foto foi forjada em tempos recentes, ou se de fato existiu. É de conhecimento geral que Nietzsche, Andreas-Salomé e Rée viveram uma relação poliamorosa, o que torna o registro provável. Mas, ainda que todas essas circunstâncias fossem diferentes, eu me pergunto: qual o problema, se grandes intelectuais assumiram poses eróticas - documentadas ou não? Suponho que nem todos foram como Schopenhauer, um confesso misógino que associava o amor sexual a prazeres mesquinhos e perversos.

Poderíamos criticar a situação de uma foto pessoal ganhar o mundo - e questões éticas quanto a isso são graves, pois não houve o consentimento dos envolvidos. Mas, com tanta distância póstuma, fica evidente que ninguém será punido por expor a imagem alheia. A figura (e não só os textos) dos três intelectuais supostamente caiu no "domínio público"...

A problematização que me interessa, entretanto, está na ideia da desonra. Por que nos convenceram de que o corpo é um instrumento sujo ou indigno? Para além dos preceitos religiosos - que tradicionalmente, e sob vários credos, opõem carne e espírito, simbolizando um conflito primordial -, deve existir aí um impulso narcísico. O ser humano cultiva a glória de se sentir diferente das outras espécies. Ostentar a cognição, o cérebro, as maravilhas do pensamento articulado em idiomas, a criatividade exibida em tendências estéticas, tudo isso massageia o ego. O indivíduo, se estimulado para ser um "pensador", encara o próprio corpo como uma simples máquina, um "veículo que tem como principal função levar a cabeça para os congressos", como ouvi certa vez um professor dizer.

O equívoco dessa atitude repousa na mesma fragilidade que constrói os maniqueísmos. Ou isso, ou aquilo - pretendem nos impor. Deus ou diabo, corpo ou mente... polarizações partidárias se inventam em qualquer área, porque a limitação humana parece ser o ímpeto classificatório. Se Nietzsche foi um grande filósofo, isso automaticamente impedia a sua nudez. O estudo rigoroso fez dele um homem "sério", afastado para sempre da festa física.

Jura?

As pessoas querem se tranquilizar, pondo cada coisa numa caixinha. Mas a vida felizmente explode.

 

Foto do Tércia Montenegro

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