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A invenção do restaurante
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Antropóloga, pesquisadora de culturas alimentares, doutoranda UFBA e Coordenadora de Cultura Alimentar e Pesquisa da Escola de Gastronomia Social Ivens Dias Branco

Vanessa Moreira gastronomia

A invenção do restaurante

Tipo Opinião
Restaurante Leite, em Recife, é o mais antigo do Brasil em funcionamento. Abriu em 1882 (Foto: Reprodução Instagram )
Foto: Reprodução Instagram Restaurante Leite, em Recife, é o mais antigo do Brasil em funcionamento. Abriu em 1882

Hoje parece natural abrir um cardápio e saber o que esperar: entradas ou petiscos no começo, bebidas no final. Reconhecemos de imediato se estamos em um restaurante regional, de estrada, de self-service, na praia em mesa de plástico ou em salão elegante, com toalhas e talheres alinhados. Mas houve um tempo em que nada disso existia. Comer era quase sempre em casa, entre conhecidos. Foi só com a vida urbana, com as ruas cheias de gente, que surgiu o espaço público de comer entre estranhos: o restaurante.

Na Roma antiga já havia tavernas que serviam refeições simples, mas a invenção do restaurante moderno costuma ser atribuída a Paris, em 1765, quando o comerciante Boulanger abriu uma casa de caldos restauradores — que podiam ter carnes, ouro, pedras preciosas e conhaque — destinados a quem se sentia fraco. A palavra "restaurante" pegou. Poucos anos depois, com a Revolução Francesa, cozinheiros da nobreza passaram a abrir casas abertas ao público. O que era privilégio de reis se transformou em experiência coletiva.

Esses lugares não ofereciam apenas comida: criaram um novo ritual. O restaurante instituiu uma coreografia de garçons, pratos sucessivos, copos e talheres alinhados. Vieram também regras de etiqueta: não colocar os cotovelos à mesa, segurar a taça de certo modo, respeitar a ordem dos serviços. Comer, que era familiar e íntimo, passou a ser espetáculo social. Imagina o estranhamento dos primeiros clientes, acostumados a comer em casa, agora cercados de estranhos, vestidos de forma especial para a ocasião. Não à toa, o ditado "costume de casa vai à rua" soava como advertência: era preciso vigiar os hábitos ordinários para não quebrar regras naquele espaço público que inventava um padrão de comportamento.

E não eram só os clientes que aprendiam. Os primeiros garçons muitas vezes não tinham o hábito de comer ou beber o que serviam. Como tratar, como se portar, tudo precisava ser ensinado. Houve até um tempo em que eram chamados com assobios, prática que hoje nos causa espanto, mas mostra como a etiqueta foi sendo construída aos poucos.

Alguns restaurantes atravessaram séculos e se tornaram ícones, como o La Tour d'Argent, em Paris, de 1582, o Restaurante Leite, em Recife, de 1882, e a Confeitaria Colombo, no Rio de Janeiro, de 1894. Em Fortaleza, a sociabilidade à mesa também se moldava em lugares icônicos: o Ideal Clube (1931), com jantares e bailes; o Náutico (1929), cujo restaurante abriu em 1952; o Albertu's, na Barra do Ceará, famoso pelas peixadas; e o Caravelle, na Avenida Luciano Carneiro, fundado nos anos 1960 e lembrado como "casa fora de casa". A essas memórias se somam a Peixada do Meio, a do Expedito e a do Alfredo, que marcaram a Beira Mar.

Hoje, estamos tão acostumados a essa lógica que quase esquecemos sua invenção. Ir a um restaurante continua sendo mais do que se alimentar: é performar um papel social. Um palco em que cada gesto, do brinde ao modo de cortar a carne, carrega ecos de séculos de história, e nos lembra que comer é também um exercício de pensar como, quando e com quem nos sentamos à mesa.

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