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O pão nosso e o pão dos outros
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Antropóloga, pesquisadora de culturas alimentares, doutoranda UFBA e Coordenadora de Cultura Alimentar e Pesquisa da Escola de Gastronomia Social Ivens Dias Branco

Vanessa Moreira gastronomia

O pão nosso e o pão dos outros

Tipo Opinião
Pão de forma (Imagem: Betsy Camara | Shutterstock) (Foto: )
Foto: Pão de forma (Imagem: Betsy Camara | Shutterstock)

Depois de dias na Argentina, fui convidada a pensar na força de um hábito que nos é tão próximo e, ao mesmo tempo, tão distinto: comer pão. No almoço e no jantar, em vez do arroz e do feijão, um pedaço de pão acompanha a carne e a batata cozida.

Rasga-se o pão com a mão, mergulha-se no molho, combina com outra porção da refeição, limpa-se o prato. O gesto simples diz muito. Para eles, pão é parte da refeição principal; para nós, quase sempre está restrito ao café da manhã, à merenda ou, à noite, ao sanduíche recheado.

Jesús Contreras lembra que só percebemos o caráter cultural da alimentação quando a confrontamos com outra. O pão na Argentina, no prato, confronta o nosso pão brasileiro, relegado ao intervalo entre refeições. Cada sociedade naturaliza seus hábitos e estranha os do outro.

A história confirma essa centralidade do pão. No Egito, antes de 1500 a.C., havia pães de diferentes formatos — redondos, ovais, triangulares — cada um com sua função. Em Roma, o pão fermentado era privilégio das elites.

Na Itália medieval, a expansão agrícola buscava as "terras do pão", tornando-o alimento central da dieta. Os portugueses trouxeram consigo esse hábito, mas no Brasil o pão nunca desbancou o arroz com feijão.

Na Argentina, as medialunas são famosas no café da manhã, hábito cotidiano que faz parte da cena urbana tanto quanto o mate compartilhado. Mas aqui, no dia a dia, toda padaria oferece o mesmo: o pão carioquinha, mais barato, onipresente.

Chamado de cassetinho no Rio Grande do Sul, de francês em Brasília e de média no Rio de Janeiro, ele tem nomes diferentes, mas função semelhante. Já o pão de fermentação natural — tradição milenar que resgata técnicas ancestrais e ganhou aura de exclusividade — só aparece em padarias sofisticadas, a preços altos, aqui e lá. Por que um pão industrial está em toda esquina, enquanto o artesanal, tão antigo quanto a própria civilização, se tornou luxo?

Talvez a resposta esteja não apenas na economia, mas também no simbolismo dos gestos. Assim como o pão acompanha a refeição argentina de modo central, os homens que se cumprimentam com dois beijos no rosto expressam um vínculo que desafia nosso olhar brasileiro, acostumado a outros códigos de afeto. O pão e o beijo são linguagens culturais: maneiras de estar junto, de partilhar, de reconhecer o outro.

E se aqui o pão não se impôs como base da refeição, encontrou no termo merenda um lugar legítimo. Como lembra Câmara Cascudo, merenda é o mais antigo e legítimo nome em português, usado até o século XIX, quando surgiram os sinônimos estrangeiros como lanche, do inglês luncheon, via francês lunch.

No Ceará, seguimos dizendo merenda e seguimos comendo pão na merenda. Talvez aí resida um gesto simbólico de resistência ao que vem de fora: manter o nome, manter o hábito, manter viva a identidade.

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