Antropóloga, pesquisadora de culturas alimentares, doutoranda UFBA e Coordenadora de Cultura Alimentar e Pesquisa da Escola de Gastronomia Social Ivens Dias Branco
Antropóloga, pesquisadora de culturas alimentares, doutoranda UFBA e Coordenadora de Cultura Alimentar e Pesquisa da Escola de Gastronomia Social Ivens Dias Branco
A ceia de Natal não é apenas uma refeição. É um instante em que o tempo se torna festivo e os detalhes são planejados com antecedência, quase sempre pensando em quem vai chegar, quem vai sentar à mesa, quem vai faltar. A mesa passa a contar histórias de rituais construídos ao longo de muitas gerações, com receitas e pratos que só fazem sentido naquele contexto. O cotidiano se afasta um pouco para que o extraordinário, a roupa, a comida e os encontros possam surpreender.
É nesse momento que aparecem as grandes aves. O peru, sobretudo, chega como visita ilustre. Não é comida de todo dia, não nasce no Ceará, não acompanha o almoço apressado da semana. Ele aparece inteiro, dourado, quase cerimonial. Talvez por isso seja tão esperado, como o anúncio de uma noite diferente, em que a casa costuma ficar mais cheia.
Não se ostentam o capote nem a galinha pé-duro do cotidiano, mas as chamadas aves natalinas. Além do peru, surgem opções criadas especialmente para essa época do ano, como o Chester, ave desenvolvida no Brasil pela Perdigão, que ganhou espaço por ser mais barata, ter preparo mais previsível e atender bem famílias menores, encontros mais íntimos, mesas com menos cadeiras. O sucesso foi tanto que outras empresas passaram a lançar suas próprias aves festivas, com propostas semelhantes, como as linhas especiais de fim de ano da Sadia e da Seara. O que se consolida não é apenas um produto, mas a ideia de uma ave especial para o Natal.
A mesa segue se compondo. Há o tender, presunto que quase não aparece ao longo do ano e chega adocicado, perfumado de cravo e frutas. O pernil evoca fartura pelo tamanho e pela presença. O salpicão, que nasceu como mistura generosa de sobras, foi reinventado como salada de frango com batatas, frutas e maionese. Castanhas disputam espaço com nozes, o panetone surge em todas as padarias e supermercados, sobremesas em travessas grandes dividem atenção com bolos de aniversário e bebidas para todos os gostos. Tudo junto, compondo uma mesa abundante e colorida, onde pratos diferentes convivem como convivem as pessoas.
Do ponto de vista da cultura alimentar, o Natal é o tempo do assado. Daquilo que exige forno, espera e cuidado, e por isso pede tempo compartilhado. Como observou o antropólogo Claude Lévi-Strauss, o assado é a comida que reduz, diferente do cozido, que conserva e aumenta. Não se assa todos os dias. Assa-se quando se quer celebrar.
Nos Estados Unidos, o peru aparece duas vezes ao ano, no Natal e no Dia de Ação de Graças. Aqui, ele surge uma única vez, exigindo um ritual próprio que envolve descongelamento, marinada, temperos, recheio, papel-alumínio protegendo asas e coxas, atenção ao forno e à apresentação. Um preparo que, muitas vezes, também é feito pensando em quem vai chegar para comer.
No Ceará, a ceia nunca foi sobre seguir regras rígidas. Ela sempre soube misturar as invenções do mercado com a tradição local. Cada família monta sua própria versão do Natal, com o que tem, com o que gosta, com o que lembra. Mas nem todas as mesas se enchem da mesma forma.
No fim, pouco importa se a ave é peru ou Chester, se há tender ou pernil. O que permanece é a alegria de comer junto. Mas o Natal também carrega seus silêncios. Há quem esteja à mesa rodeado de gente e há quem esteja só, sentindo falta de companhia. A ceia é esse instante especial que legitima o ritual do Natal, tanto na celebração quanto na ausência.
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