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Impulso amoroso
Zenilce Bruno

Impulso amoroso

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Tenho um belo e otimista costume de escrever sobre o amor e parece paradoxal refletir hoje sobre o processo do desapaixonar-se. Isso, contudo, se faz necessário para que a relação amorosa possa ser percebida e sentida do modo mais humano possível, isto é, como de fato ela ocorre.

Paixão é um estado maravilhoso e provisório, não implicando que as vivências apaixonadas não valem a pena por serem tão provisórias. Valem sim! Elas são experiências que integram projetos de felicidade. Por mais dolorosa que seja essa provisoriedade, o indivíduo pode sair enriquecido existencial e emocionalmente da experiência.

Penso num valor que é inerente aos projetos que fazemos de ser feliz. Há uma intencionalidade nesses projetos que estrutura positivamente a busca e facilita a consecução dos objetivos frente à vida e ao que dela pretendemos. Embora nem sempre seja possível realizar o projeto que se tem em mira.

Minha grande mestre e amiga Amparo Caridade falava da dignidade que é inerente ao lutar e que não haveria muito mérito em lutar se já contássemos com a certeza do sucesso. Fazia ver o quanto a luta é digna em si mesma e que necessariamente ela não tem que resultar em vitória.

Na literatura acerca da paixão mítica constata-se uma misteriosa e paradoxal evitação do apaixonado de apropriar-se do outro, como se o ato apropriativo destituísse a paixão do sonho que a envolve e lhe dá sentido. O impulso amoroso permanece então como secreto pacto dos amantes, onde, de forma enigmática, não se querem possuídos ou possuintes, mas amam-se no mistério e na loucura de buscas e transgressões.

Questiono sobre o que saberíamos da emoção mais densa se não ensaiássemos a paixão, o amor, a partilha do sonho e do gosto de ser feliz. Neste sentido, a experiência é válida mesmo que não dure eternamente. O que faz eterno é o gesto, por mais breve que ele seja. Por isso, é tão importante que aprendamos os gestos que valem a pena serem eternizados e evitemos aqueles que ferem o eu do outro.

Mas, também, outros gestos podem fazer adormecer, inibir em nós, o encantamento do extraordinário: a incapacidade do outro de dizer que ama, seu ritmo bioexistencial em descompasso, sua incompetência gestual, seu desinteresse pelo romântico, sua cristalização no igual, sua morosidade no criar. Tudo pode ser ora maravilhoso, ora frustrante.

Estagnamos a relação se nos detivermos na ilusão da perfeita unidade, na utopia da completude, se não pudermos suportar e amar o outro como ele é: insuportável e maravilhoso. Diria que a relação amorosa é uma busca inquietante e que isso promove um desassossego que nos faz permanecer num devir constante.

É no contexto de dores e alegrias que experienciamos o que há de mais denso emocional e sexualmente. O difícil é admitirmos que a realidade amorosa tem essas duas faces. Qualquer parte dela negada nos torna mais pobres experiencialmente. Porque assim é a vida, a existência, o sexo, a música, o universo, as pessoas em relação.

 

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Zenilce Bruno

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