No Sertão cearense, quem tem cisterna erguida no terreiro se vale de cada pingo d'água que cai sobre o telhado em tempos de chuva. Armazena-se hoje para garantir o porvir. Futuro quase sempre de seca, muito embora os últimos três meses tenham sido de precipitações generosas em algumas regiões. Há lugares, porém, em que as formas de consumo dessa água armazenada, sobretudo para beber, mudou.
Em Ocara, à 102 km de Fortaleza, o Açude do Batente, principal reserva hídrica da região, sangra desde fevereiro. Nos roçados, há feijão brolhando e milharal botando boneca. Mas a rede de distribuição do Batente não alcança a comunidade de Lagoa Nova dos Firminos, a 25 km da sede do município, cujo acesso se dá por uma estrada carroçável e sinuosa mata adentro.
Mesmo assim, por lá, onde a peleja da água tem sido uma constante nos anos seguidos de estiagem, onde cacimbões famosos de água doce secaram e onde cajueiros centenários morreram de sede, há um ano e meio, os moradores bebem uma água limpa e pura. E ela não vem das cisternas.
Desde setembro de 2017, o povoado conta com um sistema de dessalinização. O equipamento serve a 70 famílias da localidade e vizinhança. Foi instalado ao custo de R$ 131.997,26, em convênio entre a Secretaria estadual dos Recursos Hídricos (SRH) e o Governo Federal, por meio do Programa Água Doce.
Com uma vazão de 400 litros por hora, a máquina garante água de qualidade rara a quem antes dependia da água "duvidosa" e necessária dos carros-pipa. Através da chamada osmose reversa, o sistema retira as impurezas da água salobra, captada em um poço com profundidade de 88 metros.
E assim, separando "água doce" do rejeito, o dessalinizador alterou a rotina dos moradores. "Antes, era um sufoco. Quando vinha o carro-pipa, a gente bebia água de todo jeito. Num era salgada, mas também num era limpa. Eles jogavam a água dentro de um anel pra mode a gente apanhar com baldes. E todo mundo botava os baldes dentro. Era sujo", lembra Samara Soares da Silva, 36.
A dona de casa, bem como os demais moradores, não tinha alternativa. "A gente bebia porque era o jeito. Hoje, não. A gente bebe é água limpa, boa. Água doce, só pra beber. A água da chuva, das cisternas, a gente gasta pra tomar banho, lavar roupa", sorri.
Diferentemente da incerteza dos carros-pipa, o dessalinizador está disponível de segunda à sexta-feira, pela manhã e tarde. Nestes intervalos, o morador adquire uma ficha, no valor de R$ 0,50 centavos, e insere no contador do chafariz, que libera, automaticamente, 20 litros de água tratada.
A quantidade máxima diária oferecida é de 40 litros por família. Já o dinheiro arrecadado tem dois fins. Parte dele, 30%, fica com o operador. Outros 70% vão para o fundo da Associação dos Agricultores, sendo utilizado exclusivamente na manutenção da máquina. A energia elétrica é mantida pela Prefeitura municipal.
Os muitos usos da água bruta que já não serve ao consumo
Vaidosa, a aposentada Maria Nunes dos Santos, 82, a dona Mazé, correu quando viu desconhecidos baterem palmas e se enfiarem cercado a dentro rumo à cisterna onde lavava roupas. Voltou instantes depois. Havia ido se aprontar. Pôs um vestido seco e florido, arrumou o cabelo e passou batom.
"Tô aqui aproveitando. O sol hoje tá bom pra lavar roupa. Tem chovido muito. Antes, tava tudo seco. O cacimbão tava com água a sete metros de profundidade e secou. Agora, nas lagoas, a água já cobriu tudo. Mas ainda pega muita água, viu? Ainda há de chover muito", profetizava.
Dona Mazé é uma das viventes de Ocara que mudaram a forma de usar a água bruta após a instalação do dessalinizador. "Prefiro usar a água salobra pra lavar roupa porque faz menos espuma", explica. Usa ainda para lavar pratos, casa e para dar de beber aos bichos. Menos pra beber. É que a água da cisterna, mesmo aparada da chuva, carrega consigo as impurezas dos telhados.
Já a água doce, além de matar a sede, serve também para cozinhar. A aposentada reconhece, no entanto, que utiliza um pouco também no banho. "Mas só pra me enxaguar", revela, com o peso na consciência de quem viveu enfrentando o estio e como se houvesse culpa naquilo que é rotina onde a oferta existe.
"Em tempo de seca, toda água é boa. Mas eu num me dou com essa água (salobra). Minha pele fica seca, esturricada. O cabelo fica duro feito pau. Daí eu pego um baldinho d'água doce e me enxáguo rapidinho. É bom demais. A água é fininha. Uma benção", se refaz.
O sistema mudou também a rotina de quem buscava água bruta dos poços e lagoas vizinhas à comunidade, segundo conta o aposentado José Pereira dos Santos, 79, o Zé Moura. Além das 30 famílias previstas para serem atendidas pelo equipamento, outras 40 demandam o sistema.
"No inverno bom, vinha gente da Lagoa do Velho, dos Bodes, do Juazeiro da Raposa, da Seringueira, do Açude da Maria e do Baixio do Feijão. Tudo vinha buscar água na nossa lagoa, a dos Firmino, que era o nome de um comerciante da região. Faleceu ano passado. Até boiada de gado vinha. Isso antes de secar. Agora, eles vêm buscar é água boa de beber", comemora.
O guardião das águas
Presidente da Associação dos Agricultores de Lagoa Nova dos Firminos há dez anos, Manoel Pereira dos Santos, 49, o Iti, tornou-se também o homem por trás da máquina de fazer água. Casado, pai de dois filhos, há cinco meses ele se divide entre o roçado, a família e a lida com o sistema de dessalinização. Tarefa antes dividida com técnicos da SRH.
Da nova rotina, porém, não reclama. "Antes, chegava de dois caminhões-pipa, dia de terça e quinta. E quando eu tava pro roçado? Cansei de ficar sem água. Se num chegasse na hora... Fui muito comprar água em Pacajus, e ainda vinha salobra. Esse poço foi uma benção. Nessa seca aí, de cinco anos, até cajueiro morreu. E quando cajueiro morre, a seca é braba. O poço salvou a gente", agradece.
Zeloso, o agricultor, e agora técnico, lidera o grupo gestor do sistema. Está sempre na estação de tratamento, ou por perto, mesmo quando não é preciso. O horário obrigatório de funcionamento é das 7 horas às 9 horas e das 15 horas às 17 horas. "Eu fico por aqui porque se vier gente fora do horário, atendo também. Muita gente vem de longe. E eu já passei necessidade, sei o que é isso", conta.
Flanela nas mãos, está sempre enxugando cada canto da máquina para evitar ferrugem. Em dezembro, foram 1.700 atendimentos e fichas vendidas. Apurado de R$ 850, depositado na conta do grupo gestor. Reserva futura, já que os gastos com a máquina, até então, se limitaram ao óleo vegetal (flocon) usado na água bruta para neutralizar o sal na membrana.
Em meio a tantas atribuições, o presidente faz planos para o futuro: busca a viabilização de placas de energia solar para dar autonomia à máquina e pretende, com a água do tanque de rejeito, criar tilápias.
"Temos o privilégio da nossa água não ser tão salgada. No Sertão-Central, a água de rejeito tem até 4 mil decigramas de sal. No nosso, a água bruta tem 1,5 mil decigramas e, no rejeito, 2,7 mil. E nessa quantidade de sal, a tilápia rosa se dá", explica.
Desta forma, a água do rejeito, armazenada em um tanque no terreno de Iti, teria outra utilidade, além de alimentar os bichos. Devido a elevada quantidade de sal, o rejeito não pode retornar ao solo. "E pensar que esse poço era uma luta antiga nossa. E que ele iria pra outro lugar. Mas o cara lá queria vender a área para o tanque de rejeito. Eu doei. Aí veio pra gente", alivia-se. (Thiago Paiva)
Violência
Apesar da localização, ou talvez justamente pela distância da sede do município, contando 25 km de estrada, a violência tem sido uma preocupação recorrente em Lagoa Nova dos Firminos. O furto de bichos tem causado prejuízos aos pequenos criadores. "Antes, a gente deixava o gado no mato, perto de onde tinha água, e só ia olhar de 15 em 15 dias. Hoje, daqui a pouco, vamos ter que fazer uma redinha para dormir com a vaca de lado", contou um dos moradores, sem se identificar.
Açude sangrando
O Açude do Batente começou a sangrar às 21 horas do último dia 24 de fevereiro, um domingo. Foi quando a água cobriu o traçado da represa, construída no leito do rio Pirangi, na bacia Metropolitana. A cidade fica localizada na microrregião de Chorozinho.
Atoleiros
No caminho até a Lagoa Nova dos Firminos, onde funciona o dessalinizador, o carro que conduzia a equipe do O POVO atolou por duas vezes. A estrada de piçarra, encharcada por uma chuva recente, tinha trechos intransitáveis. A pauta só não foi abortada porque nativos nos indicaram um caminho alternativo.