Quando a internet ainda não existia e os recursos para a cultura cearense eram quase inexistentes, Hugo Bianchi (1926 - 2022) ensinava balé aos seus alunos no foyer do Theatro José de Alencar. Das coreografias mais complexas às mais simples, ele sabia todas apenas com a memória e nunca errava um passo. Não somente decorava as apresentações, mas também fazia questão de ensiná-las às crianças e aos adolescentes que, anos mais tarde, viriam a ser grandes nomes da arte no Ceará. São poucas as vezes que é possível identificar uma pessoa responsável pelo "antes e o depois" na História. Mas Hugo Bianchi, que faleceu nesta terça-feira, 18 de janeiro, aos 95 anos e por complicações da covid-19, tornou-se um desses grandes marcos de transformação na trajetória da dança no Estado.
Nascido no dia 29 de abril de 1926, começou sua carreira como bailarino na adolescência, anos depois de aprofundar seus conhecimentos como autodidata. Após um breve período, virou um dos destaques nas apresentações que aconteciam no Theatro José de Alencar, em Fortaleza. Jovem, mudou-se para a capital carioca para seguir sua carreira. Foi apresentado à Madame Lou, do Teatro Carlos Câmara, que abriu as portas.
"Hugo Bianchi nos deixa fisicamente, porém o Ceará fica com um rastro dos seus passos de dança. Em sua história, temos o percurso de um jovem rapaz cearense, com pouco dinheiro, partindo de navio ao Rio de Janeiro para estudar dança e teatro na década de 1950 e passando todas as dificuldades já sabidas de um nordestino pobre que chegava à capital federal naquele momento", explica Victor Hugo Portela, professor e pesquisador de história da dança do Ceará.
Formado pelo Serviço Nacional de Teatro do Rio de Janeiro, aprendeu com nomes importantes do balé como Maria Olenewa, David Dupré e Tatiana Eloska. Também trabalhou com artistas como Luz Del Fuego e Dercy Gonçalves. Depois de uma breve estadia em Fortaleza e um eventual retorno ao Rio de Janeiro, firmou-se novamente na cidade em que nasceu para fundar o Ballet Hugo Bianchi, em 1966. Deu aulas no TJA onde, anos depois, ganhou uma sala em sua homenagem.
"Para mim, a relevância de Hugo na nossa história está após seu retorno a Fortaleza — a convite da Comédia Cearense e do teatrólogo B. de Paiva para coreografar a 'Valsa Proibida' — quando funda sua academia e estabelece uma das primeiras iniciativas de ensino continuado de dança clássica no nosso Estado, no mesmo período em que Regina Passos seguia um percurso semelhante", comenta Victor Hugo, também mestre em Dança pela Universidade Federal da Bahia (UFBA).
Bianchi foi o responsável por formar uma geração de novos bailarinos da Cidade, como Mônica Luiza, da Escola de Ballet Mônica Luiza. Ela, que se tornou aluna dele quando era uma menina, não consegue separar sua carreira das influências que recebeu do coreógrafo. "Ele foi como um maestro, ele tocou na minha vida e na minha dança. Passou tudo o que eu sei. Fui vivendo a dança desde criança, sugando tudo de bom que ele tinha porque ele era maravilhoso como coreógrafo. Ele era um bailarino lindo e um professor com muita disciplina. Eu tenho e tinha um respeito absurdo por ele, como se fosse o meu pai, e eu o amava muito, porque ele era um exemplo. Ele é a própria dança para mim", ressalta.
Ao descobrir sobre sua morte, todas as memórias de infância retornaram à mente. Para Mônica Luiza, aquela informação não fazia sentido: em sua visão, ele era imortal. "Eu achava que ele era imortal, que ele nunca ia morrer, porque ele é tão especial que ele não devia morrer. Na hora que soube que ele morreu, passou um filme na minha cabeça. Eu voltei a ser criança, lembrei de todas as aulas, os ensaios, a minha primeira sapatilha de dança, a minha primeira apresentação de balé", emociona-se.
A coreógrafa diz que, quando fazia os espetáculos de fim de ano na própria escola, sempre deixava uma cadeira reservada a Hugo Bianchi. Ele chegava, sentava-se e apreciava o trabalho da mulher que havia sido uma de suas alunas. "Minhas montagens são muito parecidas com as que ele fazia, porque eu assimilei muita coisa dele. Ele estava agora em dezembro, quando apresentei nosso espetáculo de fim de ano. Ele sempre teve uma cadeira cativa, entrava no teatro e sentava. A gente nem podia vender essa cadeira, porque sabia que era dele", recorda.
Madiana Romcy, dona da escola de dança Madiana Romcy, também lembra do seu convívio com o bailarino e coreógrafo. "No Natal, em seu aniversário, eu sempre visitava. Ele era aquela pessoa forte, sempre aquela fortaleza. Ele foi meu incentivador. Se hoje em dia tenho uma escola de dança, foi porque ele passou essa relação para mim. Ele sempre foi o significado de disciplina, amor e cumplicidade", indica.
Hoje Madiana tem 60 anos, mas ela conheceu Hugo Bianchi aos nove. "Temos 51 anos de relacionamento. Fui aluna da escola dele, fui professora e assistente dele. Eu ajudava na montagem dos espetáculos até que fui para Nova York e, depois, para o Theatro Municipal do Rio de Janeiro", diz. Segundo ela, a maioria das professoras de balé de Fortaleza passou pelos ensinamentos dele. "O legado que ele deixou foi muito importante, de entrega total à dança. Quando ele passava o balé clássico, ele não passava só a técnica, mas também o amor, a disciplina, a questão de se entregar de corpo e alma para a dança", afirma.
Para Rossana Pucci, do espaço de arte Rossana Pucci, o bailarino fomentou o sonho de muitos artistas das últimas gerações. "Impossível não associar a figura, o nome e a dança de Hugo Bianchi aos sonhos e desejos de se tornar bailarina. Hugo acalentou e realizou, em muito de nós, esse sonho, arraigado pelo seu excesso de disciplina, que criou raízes e nos fez voar. Nesse momento de tão grande perda para todos nós do mundo da dança e da cultura, de modo geral, Hugo nos deixa um lindo e eterno ballet de repertório, onde ele, o protagonista, teve um papel decisivo e fundamental na vida de incontáveis bailarinos", homenageia.
Félix Ramazzotti, da direção e produção da escola de Ballet Hugo Bianchi, está no processo de resolução de trâmites burocráticos para que o corpo de Hugo Bianchi seja velado no Theatro José de Alencar. Mais informações devem ser divulgadas em breve, nas redes sociais.
Sobre disciplina e profissionalismo
Eu aprendi sobre disciplina e rigor bem pequena. Fazia balé numa das escolas de dança mais tradicionais da cidade. A que levava o nome de uma figura com sobrenome estrangeiro.
Ainda criança, lembro de saber direitinho que o "c" e o "h" juntos tinham som de "q", e de que era preciso muita força para aguentar o tranco do balé clássico. Meus pais me colocaram para aprender a dançar na escola do Hugo Bianchi aos 5, e ali fiquei até o fim da adolescência.
O Hugo tinha fama de ser extremamente rigoroso. Não se podia dançar e voltar pra plateia com o figurino. A redinha do coque tinha que ter o mesmo tom do cabelo. Não se podia comer exageradamente antes de dançar. Relendo tudo isso, que rigor extremo era esse que na verdade queria dizer qualidade, cuidado, profissionalismo?
O Hugo foi central na formação de inúmeras gerações da dança cearense. Muitas antes de mim, e outras tantas depois. Merecia ter tido um teatro, lei cultural, projeto educacional, ou coisa semelhante, em seu nome. E segue imenso, inesquecível.
Elisa Parente foi aluna de Hugo Bianchi entre 1989 e 1997. É jornalista cearense e mora na Espanha há sete anos, onde trabalha como tradutora.
Dança, dança
Bianchi dança e dança outra vez, outras vezes, ene vezes. Tem todo um repertório de passos esculturais. E então dança, dança, dança, dança e redança, porque dançar é a sua predestinação. Seu corpo em volteios se pronuncia, fala. À mercê da invenção, vai se agitando e se agigantando e sua dança se lança, libérrima de pressões, repressões. Dança, dança, dança, dança, dança e dá-se à dança, não a sós, tão-só consigo, mas com os tantos e tantas que com sua dança aprenderam a dançar.
E assim, a dançar e fazer dançar, Bianchi levanta as mãos e seus braços criam asas e seus pés vão dançando em passadas aladas, sem mais imprimir os rastros no chão. Bianchi agora flutua, espalhando passos pelo espaço e voejando viaja envolto pelos compassos de uma canção que não existe ou que só existe dentro de si mesmo.
Ricardo Guilherme, ator, dramaturgo e diretor de teatro.