"O futebol é para todos". A frase é repetida, mas quem convive no meio sabe que nem sempre o princípio é aplicado. Desde o surgimento das primeiras regras, na Universidade de Cambridge, na Inglaterra, o que se conhece como futebol é um esporte seletivo, elitista e racista. Conforme o tempo foi passando, passou a se popularizar, embora a sua elitização seja cíclica: ora vemos os estádios com maior presença popular, ora não.
Um ponto, contudo, pouco mudou: o racismo. Neste dezembro, um capítulo promete começar a mudar essa realidade. Era 8 de dezembro. O quarto árbitro de Sebastian Coltescu, teria dirigido ofensa racial ao Pierre Webó, assistente técnico do Istambul Basaksehir contra o PSG. A partida foi interrompida por jogadores, que se recusaram a continuar em campo.
No Brasil, pouco mais de uma semana depois, quem também comprou barulho da causa foi o meia, Gérson, do Flamengo, que acusa o meia-atacante, Índio Ramírez, do Bahia, de ter proferido injúria racial contra ele.
Ao O POVO, o estudioso e membro do Observatório da Discriminação Racial no Futebol, Luciano Jorge de Jesus, afirma que o posicionamento dos jogadores pode ser o primeiro passo para um avanço na pauta, mas, para isso, torcedores, clubes, federações e associações precisam jogar no mesmo time.
O POVO - Como você enxerga que o ocorrido na partida entre PSG e Basaksehir, pela Champions League, pode ajudar a mudar o cenário do racismo no futebol?
Luciano - Acredito que essa ação tenha um potencial muito bom para pensarmos que é a forma como várias pessoas que ocupam o futebol vão notar o que é o racismo. Não adianta uma placa escrito "Não ao racismo". Isso é muito pouco. É um passo importante, mas não é o fim. Estamos caminhando no sentido de construção de ações. É difícil falar nisso, pois falamos de uma Europa que vive talvez, desde as lutas anticoloniais, todo um processo de imigração e tem feito surgir grupos antissemitas, racistas, neonazistas, esse é o cenário da Europa. Isso é algo que faz enfrentamento com a lógica social europeia. Não sei se a Uefa está a fim de encarar isso, sendo sincero, mas (os) pressiona. Os jogadores têm o papel fundamental de pressionar a Uefa a tomar partido. A Uefa tomando partido, se cria um cenário importantíssimo de questionar a lógica racista e xenofóbica que sempre imperou no continente europeu.
O POVO - No estádio, presenciamos muitos casos de racismo, dentro e fora de campo. Há alguma tese que comprove o motivo pelo qual algumas pessoas acreditam que possam ser preconceituosas dentro do estádio?
Luciano de Jesus - O fato de termos tantos casos crescentes de racismo em campos de futebol, em diferentes divisões e lugares do país, não é simplesmente porque está crescendo (o número de casos). A atual conjuntura — termos o presidente que temos —, nos impele e nos convida a pensar mais nisso, mas o que acontece é que as pessoas têm maior consciência que aquilo é racismo. Eu diria que, ao longo desses anos, estamos tomando consciência da existência de uma estrutura que vai determinar onde pessoas negras devem estar. Não tem dúvida que uma ajuda para isso é a presença do Observatório. Tem nos ajudado a compartilhar, inclusive, a denúncia.
O POVO - Assim como há o racista no estádio, há as pessoas ao redor, que muitas vezes não concordam com as atitudes, mas não sabem como agir. Qual você acredita que seja a melhor maneira de agir frente a esse tipo de acontecimento?
Luciano de Jesus - Acredito que a melhor maneira da denúncia é aquela que será segura. Não adianta a pessoa se colocar em situação de risco, onde ela será agredida, por conta de uma outra agressão. Muitas vezes ela não consegue, na hora, dizer algo, mas ela deve procurar pessoas que são competentes e registrar queixa, dar a descrição. O mais importante é não deixar passar. Não podemos deixar passar mais. O que por vezes me incomoda é ter um milhão de pessoas filmando e ninguém intervir. Estamos falando de uma sociedade espetáculo.
O POVO - E quanto aos clubes, qual seria o melhor comportamento a ser adotado por eles?
Luciano de Jesus - Gosto dessa pergunta, pois muitas vezes não se é levado em consideração o papel dos clubes. Já vi jornalista dizendo que, se deu para identificar, não precisa penalizar o clube. Não estou dizendo que os clubes precisam ser punidos sempre, mas o clube precisa ter responsabilidade. Não adianta um clube de futebol se envolver com postagens antirracistas e pronto. Hoje em dia todo mundo cita Angela Davis (filósofa norte-americana), muitas vezes tira a frase do contexto para dizer que "não adianta não ser racista, que precisamos ser antirracistas", mas isso é óbvio. Mas o que é ser antirracista para um clube de futebol? Como um clube deve criar espaços onde a diversidade seja respeitada e que o máximo de pessoas sejam vislumbradas? É algo que vai além da mera formalidade e do mero falatório. É preciso pensar em conselhos que vão atender às diferentes classes sociais. Qual é o poder de comunicação ou de interlocução de um clube que se diz antirracista, mas que o conselho deliberativo é amplamente branco? Nenhuma. Isso só vai mudar quando os clubes olharem como são construídos no papel. Não adianta um programa de sócio que só serve para pegar dinheiro do torcedor, mas que na hora que o torcedor tem o direito de uma participação política ativa, ela não se realiza.
O POVO - Falando em posicionamento de clubes, recentemente tivemos um caso de racismo que ocorreu em um torneio de base envolvendo um garoto de 11 anos, Luiz Eduardo, e um técnico. Como deve ser a formação em escolas de base e clubes menores em casos como esse?
Luciano de Jesus - A questão, no caso desse garoto, é como os clubes pequenos e escolinhas têm conseguido lidar com espaço de formação de atletas e técnicos. Se a gente pensar, os clubes pequenos não têm a possibilidade de bancar todo o seu corpo técnico de uma forma efetiva, então há um trabalho precarizado e, com isso, há ainda mais a possibilidade de que pessoas despreparadas ocupem esses espaços. Não estou querendo dizer que o racismo está ligado à ausência de formação, mas estamos falando de um espaço que é muito visado. A gente precisa refletir sobre esse espaço que o técnico ocupa na formação de jovens e adultos. Um adulto que se dirige a uma criança da forma que ele se dirigiu a esse menino mostra várias coisas sobre processo de formação e identidade. É importante também que a gente pense como o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) é respeitado no espaço de formação de atletas. Como os clubes tem dialogado com o ECA para formar jogadores?
O POVO - Em casos de racismo na arquibancada sempre há uma discussão sobre quem deve ser punido: a pessoa, a torcida ou o clube. Qual sua opinião sobre o tema?
Luciano de Jesus - Depende da situação, qual o clube, qual a punição. Eu diria que, no momento em que estamos, o clube deve ser punido sempre e o torcedor também. Mas além disso, como eu já disse: qual seria a resposta do clube? Um clube de futebol recorre a sua comunidade para fazer tudo, então o mínimo que um clube deve dar é essa resposta. Se eu recorro a uma comunidade para fazer algo, essa é a comunidade que eu faço parte. Se os clubes esquecem isso, eles esquecem do papel social e da importância que o futebol tem, do quanto ele mobiliza.
O POVO - Quanto aos jogadores, vimos recentemente uma partida da principal competição europeia ser suspensa e remarcada porque os jogadores se recusaram a ficar em campo após uma suposta atitude racista e também houve a denúncia do Gérson contra o Índio Ramírez. Quais outras atitudes os jogadores podem tomar pela causa?
Luciano de Jesus - A gente acha que tudo começa e termina com uma atitude racista, mas não é assim. A atitude racista que está expressa, como aconteceu em Paris, precisa se desdobrar em outras atitudes. O mais importante é, primeiramente, os jogadores entenderem. A gente precisa aprender a dar respaldo a esses atletas e paciência, muitas vezes. Às vezes o posicionamento vai ser muito avesso ao que estávamos pensando. Quantas vezes escutamos o próprio Neymar dizer sobre o que ele pensava de ser negro e o que ele diz hoje. A gente precisa entender que atletas de futebol são pessoas comuns, contraditórias, assim como cada um de nós que comete erro, acerta, precisa se construir e se reconstruir nesse cenário. Uma posição muito importante é essa, sair de campo, entender que aquilo é errado, absurdo, violento e, mais do que isso, é seguir se posicionando, pois esse posicionamento vai ter grau, diferença. Me parece estranho que exijamos de um jogador de futebol uma postura de militante, que ele, que nunca leu Lélia Gonzalez, cite Lélia Gonzalez. Isso não irá acontecer. É um processo.
O POVO - O racismo ocorrido na Champions League veio de uma autoridade de campo. Como você acredita que deveria ser o trabalho de enfrentamento do racismo nas entidades de futebol?
Luciano de Jesus - Precisa de investimento, apoio, e nem falo só de dinheiro, mas de visibilidade. Na mesma medida em que se tem um quarto árbitro que comete o ato que cometeu, temos outro ponto: quantos árbitros negros vamos ver apitando uma final de Copa do Mundo? Não adianta fazer palestra, falar para deixar todo mundo emocionado, chamar o Observatório para fazer alguma ação, mas, no dia a dia, isso não ser cuidado.