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"Meu medo maior é quanto ao fanatismo religioso", diz Linda Brasil
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"Meu medo maior é quanto ao fanatismo religioso", diz Linda Brasil

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Linda Brasil foi a vereadora mais votada em Aracaju com 5.773 nas últimas eleições (Foto: Divulgação)
Foto: Divulgação Linda Brasil foi a vereadora mais votada em Aracaju com 5.773 nas últimas eleições

Em 2020, saíram vitoriosas das urnas 28 travestis e mulheres trans, dois homens trans e um pessoa interssexo. Sete candidatas foram as mais votadas em suas respectivas cidades, segundo a Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra Brasil). 

Uma delas é Linda Brasil, primeira mulher trans eleita em Aracaju (SE) e a candidatura feminina mais bem votada da história do Legislativo da capital sergipana. Com 47 anos, a mestra em Educação tem histórico de militância pelos Direitos Humanos e será a única a representar o Psol na Câmara de Aracaju.

Por telefone, Linda conta que já precisou fingir desfalecimento para fugir de uma situação de violência, perdeu a conta das que foram vítimas fatais da intolerância e passou duas décadas longe do mercado de trabalho formal e da educação para poder assumir a identidade de gênero.

Eleita, é uma das poucas de parlamentares de esquerda a ocupar uma das 24 vagas. Já se colocou como oposição ao prefeito reeleito, Edvaldo Nogueira (PDT), e agora se prepara para assumir, segundo avalia, a grande responsabilidade que lhe foi conferida.

 

O POVO: Em 2021, a Câmara de Aracaju passa a ter você, do Psol, e uma vereadora eleita pelo PT, a professora Ângela Melo. Como vai ser essa bancada da esquerda?

Linda Brasil: Ainda estamos conversando e entendendo melhor como vai ser a composição. Tivemos um seminário para entender melhor como vai funcionar a estrutura da Câmara, composição da assessoria e algumas questões administrativas. Já me declarei como oposição já que o Psol é opositor ao atual governo que foi reeleito. Já conversei com algumas pessoas que também estão na oposição, como a única mulher eleita pelo PT (Ângela Melo) e vamos articular essa frente. Tem algumas pessoas que são oposição e não são da esquerda. Mas PDT e Rede, por exemplo, estão com o atual governo.

OP: Qual o perfil do eleitorado de Aracaju? É mais conservador ou progressista, na sua avaliação?

Linda: Aracaju, como aconteceu em várias cidades do Nordeste, não elegeu o atual presidente. Claro que, aqui, por ser uma cidade provinciana, nós só temos 600 e poucos mil habitantes, e mais de 400 mil eleitores, foi surpreendente a minha eleição, por ser a primeira mulher trans e não só a candidata, mas a pessoa mais bem votada concorrendo com mais de 700 candidatos e candidatas. Isso foi muito importante, foi uma resposta da sociedade que ela não atura mais essas ideias reacionárias, discurso de ódio que foi propagado na política ultimamente.

OP: Como foi feita a sua campanha?

Linda: Nós fizemos um trabalho nas redes sociais que teve uma repercussão muito grande. Mas também houve uma receptividade da população em geral, principalmente de pessoas da periferia, com as quais eu já tenho diálogo, e também da juventude. Eu sou mestra em Educação e faço muitas palestras em escolas, universidades e repartições sobre o respeito à diversidade, além de outras questões sobre diversidade sexual e de gênero. E isso contribuiu para que essas pessoas pudessem conhecer um pouco da minha história e do meu trabalho. Assim, elas confiaram e me deram essa votação tão expressiva.

OP: Você pode falar um pouco sobre o seu processo de transição? Você já mudou o nome na certidão de nascimento?

Linda: Hoje, por causa da luta do movimento LGBT e principalmente do movimento trans, nós já temos o direito de retificar o nosso nome e o gênero diretamente, tendo 18 anos, ou até menos, tendo autorização dos pais. Você pode, com sua autodeclaração e sem nenhuma documentação, requerer essa alteração, essa retificação. Porque, na verdade, foi um erro (o registro do nome em gênero diferente). Não é que a gente mudou, nós não mudamos, a gente nasce assim e simplesmente não teve oportunidade de escolher qual o nome e gênero que está de acordo com a nossa identidade de gênero. Eu passei por todo esse processo de silenciamento. Tentei, de certa forma, não ser eu mesma para poder ocupar os espaços, terminar o ensino médio, como terminei. Fui trabalhar formalmente mas, não dava para afirmar minha identidade de gênero em um emprego formal e foi, a partir daí que eu comecei a trabalhar como cabeleireira para poder começar meu processo de hormonioterapia e de exigências ao respeito pelo meu nome social e a minha identidade de gênero. Tive problemas porque a população trans na época, e ainda hoje, é muito marginalizada, estereotipada, vistas pelo ângulo da prostituição. Cerca de 90% das pessoas trans estão compulsoriamente na prostituição e eu, por não me adequar, por não ter um acolhimento para ficar no emprego até informal, como cabeleleira, acabei sendo empurrada para a prostituição. Morei cinco anos na Itália, voltei em 2008 e comecei a trabalhar em salões daqui, de amigas.

OP: Foi dentro da universidade que começou essa sua atuação política, não foi isso? Como foi esse processo?

Linda: Em 2013, eu entrei para a Universidade Federal de Sergipe (UFS), que foi o divisor de águas na minha vida, pois comecei a me conscientizar da importância de lutarmos pelos nossos direitos. Já nos primeiros dias de aula eu tive problemas por causa do uso do nome social dentro da instituição, e isso me fez entrar com um recurso contra a UFS, o que acabou gerando uma portaria que regulamentou o uso do nome social dentro da instituição. A partir daí, eu comecei a me envolver também dentro do movimento estudantil e feminista. Sou co-fundadora da AmoSerTrans, Associação e Movimento Sergipano de Transexuais e Travestis, fui a primeira mulher trans a entrar para um coletivo organizado de mulheres que até então só tinha mulheres cisgênero. Conheci a militância do Psol e, em 2015, me filiei ao partido sendo convidada a me candidatar em 2016.

OP: Como foi esse processo de estudar para o Enem? Você trabalhava e estudava?

Linda: Eu passei 20 anos fora do mercado de trabalho formal e também da educação. Me inscrevi por acaso para prestar o exame e me preparei de casa mesmo, lendo algumas provas dos anos anteriores. Fui sem nenhuma pretensão, como se fosse um teste. Nem imaginava que iria entrar, pois não me preparei, não fiz cursinho nem nada. Foi até uma surpresa, tive uma boa pontuação para alguém que não estava estudando e isso me motivou. Foi isso que me fez lutar para não ser excluída. Porque, desde a matrícula, eles negaram meu nome social e disseram que, a única forma que eu tinha de ter isso respeitado seria, a cada semestre, falar com cada um dos professores para que eles adicionassem meu nome social na lista de frequência, de lápis. Eu fiz isso no primeiro dia. Duas professoras foram receptivas, mas o terceiro professor se negou e, além disso, falou bem alto, numa sala com 40 alunos, o nome de registro. Isso foi uma violência muito grande e, a partir daí, fiquei muito indignada. Fiz um post nas redes sociais que teve muita repercussão e acabei tendo apoio dos órgãos de defesa dos Direitos Humanos. Isso me ajudou a lutar pelos meus direitos e foi aí que eu fiz o processo administrativo que gerou a portaria um mês e meio depois, que respeitou não só o meu nome social mas o de outros alunos e todos os docentes e servidores da instituição.

OP: Você foi a primeira pessoa trans a estudar na UFS?

Linda: Eu fui a primeira reconhecidamente. Porque você pode ser trans e não ser reconhecida. Mas, com essa minha luta, muitas pessoas passaram a exigir e a afirmar a própria identidade. Pois existe essa questão da auto-negação das nossas identidades para que possamos nos manter dentro desses espaços. Hoje, sete anos depois, já passaram mais de 40 pessoas que tiveram esse direito de serem identificadas de acordo com a identidade de gênero (na instituição de ensino).

OP: Sergipe é um estado muito violento para pessoas trans. Você se sente vulnerável com relação a isso? Já passou por algum tipo de situação de violência por ser uma pessoa trans?

Linda: Já passei por várias situações. Não diretamente, mas de ameaças e ataques nas redes sociais, que aumentaram bem mais depois da minha eleição e até fizeram com que eu fizesse um boletim de ocorrência e entrasse com uma ação e a delegacia responsável por grupos vulneráveis está buscando os responsáveis e alguns até já foram identificados. Várias amigas minhas já foram executadas. Em 2018, uma amiga que morava até próxima a mim, que era também cabelereira como eu e acabou sendo empurrada para a prostituição. E, eu chegando em casa a encontrei na esquina, esfaqueada, e isso foi logo depois da eleição de Bolsonaro, quando algumas pessoas se sentiram legitimadas a nos atacar por causa do discurso de ódio que ele sempre propagou. Até o rapaz que esfaqueou disse que estava licenciado porque agora Bolsonaro iria acabar com todos os viados do Brasil.

OP: Quem são as pessoas que estão ao seu lado? Existe uma proximidade com a sua família?

Linda: Eu digo que um dos motivos de eu ainda estar viva é por conta da minha família, porque nós, pessoas trans, temos uma expectativa de vida de 35 anos. O Brasil é o país que mais mata pessoas LGTBQIA+, de acordo com a Antra. Sem contar o fato de 90% das mulheres trans estarem na prostituição como eu já estive, onde nós corremos um risco de vida muito grande. Eu já passei por várias situações, até de fingir que estava morta para parar de sofrer agressões. Mas, graças a Deus e a minha família, eu saí da prostituição e estou hoje eleita vereadora. Tive alguns problemas com figuras masculinas, mas minha mãe e irmãs e alguns irmãos, no geral, eu fui bem acolhida na família. Isso foi fundamental. Eu me sinto privilegiada também, em relação a outras pessoas trans, porque eu sou branca e existe um recorte de raça, onde a violência é muito mais potencializada. Ainda mais quando não tem o apoio da família. As pessoas que deveriam cuidar, amar, proteger, acabam também nos violentando e nos colocando fora de casa, nos deixando à mercê dessa violência. Não existe nenhum agrupamento humano nem animal que coloque seus filhos para fora de casa por eles serem quem eles são realmente.

OP: Como foi esse episódio em que você precisou se fingir de morta para parar uma situação de violência?

Linda: Não foi aqui no Brasil. Eu tive que sair do meu país, como a grande maioria das travestis fazem. Onde eu morei, por coincidência, a grande maioria de mulheres trans e travestis são de Fortaleza. Conheci várias pessoas e fiz amizade com muitas. Uma vez, eu entrei no carro de um cliente e percebi que tinham mais duas pessoas no porta-malas. Ainda saí correndo, mas eles me derrubaram, começaram a me dar chutes, pisaram na minha cabeça. Vi que não tinha como reagir e desfaleci, parei de respirar. Foi aí que senti a diminuição dos ataques deles e acabei saindo dessa situação muito machucada, com o rosto totalmente desfigurado.

OP: Foi a partir daí que você decidiu voltar ao Brasil?

Linda: Foi.

OP: Como foi a escolha do seu nome?

Linda: No início da identificação, a gente fica buscando um nome que mais corresponda com a nossa identidade. Eu tive vários nomes e queria um que fosse forte para o meu salão. Eu já usava Linda Heisenberg, pois sou muito fã de uma modelo, a Linda Evangelista. Uma vez, eu estava numa festa, na véspera do 7 de Setembro, com um vestido que tinha as cores da bandeira, e uma amiga falou ‘você está linda, Brasil’. Esse ficou sendo o nome do meu salão e acabou se tornando a minha identidade. Na certidão de nascimento, eu sou Linda Brasil Azevedo Santos.

OP: Você é a única psolista, primeira e única mulher trans e a mulher mais votada de Aracaju, para a Câmara. Como você está se sentindo com tudo isso?

Linda: Eu ainda sou a mulher mais bem votada da história da Câmara Municipal. É um desafio muito grande e uma responsabilidade muito grande. Meu medo maior é quanto ao fanatismo religioso que acaba estimulando comportamentos de ódio como aconteceu com a Dandara dos Santos em Fortaleza, em 2017. Ou, como ocorreu com minha amiga Laíza, que estava na rua e cara passou com uma faca e deu um golpe no peito dela, que acabou falecendo. Eu tenho muito receio disso, mas vou fazer o possível, não vou me intimidar. Vou tentar fazer uma gestão que seja inovadora, porque não adianta também ser mulher, trans, LGBTQIA+, e ocupar esses espaços reproduzindo a mesma estrutura política construída com base em tanta opressão, escravidão misoginia, machismo, sexismo e lgbtfobia. Eu vou (para a Câmara) com o intuito de questionar esse sistema e provocar transformações para que possamos realmente fazer um trabalho que provoque reflexões para toda a sociedade.

OP: Quais são suas principais propostas, enquanto vereadora, e a quais políticas você já se opõe?

Linda: Como mestra em educação e defensora dos Direitos Humanos, essas serão duas pautas fundamentais. Direitos Humanos não só para a população LGBTQIA+, mas também dos adolescentes, população negra, principalmente periférica, mulheres, pessoas com deficiência, todos que precisam ter esses direitos respeitados para viver com um mínimo de dignidade. E a educação, para mim, é a base disso tudo. Parte do preconceito e da discriminação tem base na desinformação. Nós vamos desenvolver vários projetos que levem essa informação e sensibilização da população geral sobre esses temas. Além disso, eu faço um trabalho junto às pessoas que lutam por moradia digna aqui, tenho ligação com alguns movimentos, principalmente para mulheres e LGBTs locais para que a gente possa ajudar e propor políticas públicas que ajudem essas ocupações e cobrar do estado a criação de novas casas para que as pessoas tenham direito à moradia digna. Também temos um trabalho de direito à cidade, sobre mobilidade urbana, acessibilidade, com transporte público de qualidade. Temos um projeto também para que pessoas desempregadas tenham direito ao passe-livre. Ainda falamos sobre meio ambiente e agricultura. Nosso mandato tem essa proposta de levar todos esses temas.

OP: Tivemos aumento de candidaturas esse ano, mas algumas delas são ligadas a partidos conservadores. Como você avalia essa situação em 2020?

Linda: É complexo, mas nós precisamos respeitar. Se (pessoas trans) estão nesses partidos, que pelo menos fiquem atentos para produzir transformações dentro dessas instituições. Que não deixem ser esmagadas por essa velha política. No meu caso, eu estou na política só por causa do Psol. Foi o partido que fez com que eu me filiasse porque eu tinha ojeriza (à política) por causa dessas instituições partidárias, que só se beneficiam e pensam os direitos dos empresários. Onde não existe uma construção de base. Eu dizia que nunca iria me filiar. Mas, quando conheci o Psol que é um partido de combatividade, que tem um pensamento coletivo, que pensa nas pessoas da periferia, nos que mais necessitam, isso me motivou. Mas, eu entendo que existam aqueles que se filiem a outros partidos, como o Thammy Miranda (PL), homem trans eleito em São Paulo. Que ele possa provocar reflexões para não reproduzir essa normatividade opressora que sempre nos silenciou e violentou.

OP: Você está em contato com outras candidaturas trans vitoriosas pelo país?

Linda: Estive em contato com a Érika Hilton (vereadora eleita pelo Psol em São Paulo e mulher mais bem votada na cidade). Conheci a co-vereadora eleita pelo Psol, Carolina Iara (integrante da Bancada Feminista, candidatura coletiva eleita em São Paulo) que, além de ser travesti (e intersexo), leva também a pauta das pessoas portadoras de HIV. Outras também, Brasil afora, como a Benny Briolly (transexual eleita em Niterói - RJ), também eleita pelo Psol, e que está lá no estado do Rio de Janeiro sofrendo ameaças. Acho muito importante formar essas pontes para que possamos nos fortalecer e pensar em construir políticas de forma coletiva e, em vários estados do país, possamos fortalecer nossa luta e resistência.

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