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"Nós estamos servindo de laboratório para o vírus"
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"Nós estamos servindo de laboratório para o vírus"

O jovem cientista do interior do Ceará que participou do sequenciamento do novo coronavírus está trabalhando para entender a nova linhagem que causou um novo pico de casos e mortes no Amazonas
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FORTALEZA, 20-01-2021: Foto remota do cientista cearense Darlan Candido, PHD em Oxford. Darlan foi um dos responsaveis pelo sequenciamento do genoma do covid-19, que foi feito em apenas 24 horas. (foto: Barbara Moira/ O POVO) (Foto: Barbara Moira)
Foto: Barbara Moira FORTALEZA, 20-01-2021: Foto remota do cientista cearense Darlan Candido, PHD em Oxford. Darlan foi um dos responsaveis pelo sequenciamento do genoma do covid-19, que foi feito em apenas 24 horas. (foto: Barbara Moira/ O POVO)

Em março de 2020 foi feito o sequenciamento genético do vírus que infectou o primeiro paciente conhecido que apresentava a Covid-19 no Brasil. O trabalho, feito em tempo recorde, levou 48 horas e demandou todo o esforço e dedicação de 78 mulheres e homens da ciência, dentre eles, um cearense: Darlan da Silva Candido, 28 anos, natural de Quixeramobim, graduado em Farmácia pela Universidade Federal do Ceará (UFC) e doutorando da Universidade de Oxford, no Reino Unido.

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Desde então, Darlan tem se dedicado a estudar o novo coronavírus e suas variações. É que com o espalhamento da epidemia ao redor do mundo e a infecção de milhões de pessoas, aconteceram várias mutações genéticas no vírus, um fenômeno comum em organismos vivos.

As mutações que acontecem no SARS-CoV-2 são alterações frequentemente acidentais no material genético, o que faz com que haja novas variantes, cepas ou linhagens dele. Desde o início da pandemia, os cientistas têm catalogado variantes em pelo menos 30 países, sendo que em um só país pode haver dezenas de linhagens distintas.

O assunto ficou em evidência na semana passada, quando a falta generalizada de oxigênio hospitalar em Manaus atingiu patamar de tragédia. O colapso do sistema de saúde aconteceu com o aumento vertiginoso dos casos de Covid-19, e a suspeita é de que uma mutação tornou o vírus mais transmissível e contribuiu para a aceleração do contágio no Amazonas.

Os primeiros indícios de que essa nova variante estava em circulação vieram quando o Japão anunciou, no dia 10 de janeiro, que havia encontrado a linhagem em viajantes que estiveram no Brasil e voltaram ao país. Dois dias depois, a Fiocruz Amazônia, unidade técnico-científica da Fundação Oswaldo Cruz no Amazonas, concluiu que a mutação tinha de fato origem no estado.

Apesar da evidente importância da investigação genômica, pesquisadores apontam que o Brasil sequenciou apenas 0,024% dos casos confirmados no país. O índice é menor que o de países emergentes, como Índia (0,042%), México (0,096%) e África do Sul (0,256%), embora o Brasil tenha uma quantidade de casos confirmados muitas vezes maior. Entre as hipóteses apontadas estão a dificuldade na importação dos reagentes, o custo elevado dos insumos e equipamentos (agravado pela alta do dólar) e a falta de profissionais habilitados para esse tipo de trabalho fora da região Sudeste.

No momento, Darlan está em São Paulo. Trabalha junto a outros pesquisadores para tentar entender quais as características da variante do Amazonas. Os estudos podem ajudar a explicar a explosão de casos de covid-19, mas as mutações não são a única causa para esse aumento. A falta de medidas de prevenção como o distanciamento social, relaxado tanto pelo poder público quanto pela população, a negligência no uso de máscaras e a simples higiene das mãos também têm parcela significativa de responsabilidade.

O POVO - Qual o motivo das mutações? É algo comum dos vírus?

Darlan Candido - Sim. Todos os seres vivos, quando replicam o seu material genético, podem sofrer mutações. A mutação nada mais é do que um erro na hora de fazer a cópia do material genético, que é o DNA ou o RNA, e codifica todas as informações para as células. É como se você tivesse uma carta e quisesse fazer a cópia dela à mão. Das palavras dessa carta, cada letra que você erra é como se fosse uma mutação. De uma forma bem simples, é o que a mutação representa. Nós também passamos por mutações, e elas causam doenças genéticas, como por exemplo, o câncer. A diferença é que os vírus, e principalmente, os vírus de RNA, que é o caso do novo coronavírus, mutam muito mais rápido. É por isso que a gente se preocupa em fazer a vigilância genômica desses vírus, porque as mutações ocorrem com muito mais frequência.

OP - Quantas mutações ocorrem em média para o novo coronavírus?

Darlan - Estimamos que haja de duas a três mutações por mês. No mundo inteiro, já existem mais de 800 linhagens do novo coronavírus. A gente precisa se assustar por causa disso? Não. Nós só classificamos as linhagens de acordo com as mutações para entendermos a diversidade que está circulando. E isso quer dizer que todas as linhagens são de interesse ou perigosas ou que alguma coisa de muito importante mudou? Não. Na verdade, na maioria delas, não tem diferença nenhuma em relação à que foi encontrada na China no começo da pandemia. No entanto, é a partir desse catálogo de diversidade que a gente consegue identificar as linhagens que têm potencial, seja porque estão transmitindo a doença mais rápido ou porque causam uma gravidade maior de Covid-19.

OP - Temos visto muito destaque em relação à linhagem descoberta no Amazonas. Podemos ter também uma aqui no Ceará, nos mesmos moldes?

Darlan - Não há indícios ainda, mas pode sim, ter uma linhagem nova no Ceará, assim como em qualquer outro estado do Brasil. Precisamos sequenciar mais amostras recentes do nosso estado para entender a diversidade genética circulante. No momento em que o vírus começa a circular em uma população diferente, as mutações começam a acontecer. E dependendo das características da transmissão naquela população, algumas mutações podem ser eliminadas com o tempo e outras seguir adiante. As linhagens que foram introduzidas no Ceará no início da pandemia eram diferentes do restante do Brasil, algo que pode estar relacionado às ligações internacionais de voos. Em relação à linhagem de Manaus, estamos vendo um crescimento muito rápido. Estamos preocupados com ela porque os estudos sorológicos, ou seja, de anticorpos, estimaram que até ¾ da população já havia sido infectada pelo novo coronavírus. Então a gente não esperava ver essa situação novamente lá, o que levanta questões sobre se essa linhagem se transmite mais rápido ou causa reinfecções. Por enquanto, são apenas hipóteses, ainda está sendo estudado.

OP - Qual o papel do isolamento social nas mutações do vírus?

Darlan - Hoje, no mundo, temos quase 100 milhões de pessoas infectadas. Se a mutação ocorre quando o vírus está se multiplicando dentro do indivíduo infectado, temos aí uma chance de 100 milhões para o vírus sofrer uma mudança significativa para a transmissão, tratamento, nível de gravidade da doença ou mesmo para a eficácia de uma vacina. Quando não seguimos as medidas de distanciamento social, não usamos máscaras, não higienizamos as mãos e depois, nos infectamos, nós estamos servindo de laboratório para o vírus, ou seja, dando mais uma oportunidade para ele sofrer uma mutação e causar um efeito significativo para todos. Quanto maior o número de pessoas infectadas, maiores são as oportunidades para o vírus mudar.

OP - Então essas variantes podem colocar em risco a eficácia das vacinas?

Darlan - Por enquanto, não temos nenhuma evidência de que alguma dessas variantes não seja coberta pela vacina, mas sim, existe essa possibilidade. É o que acontece com a influenza, o vírus da gripe. Como a influenza muta duas vezes mais rápido do que o novo coronavírus, precisamos tomar a vacina contra ela todos os anos. Se o vírus da covid-19 passar a acumular muitas mutações em regiões importantes para a resposta imune contra o vírus, aí sim pode ter um efeito em relação à vacina.

OP - Com o que você está trabalhando agora?

Darlan - Estamos focando em Manaus porque é a principal questão a ser respondida no momento. A Inglaterra já fechou as fronteiras para o Brasil, América do Sul e Portugal, devido à mutação. Estamos tentando entender a dimensão do problema de Manaus, o que significa para o Brasil e para o mundo, assim como esperamos também dar mais informações sobre como a pandemia está ocorrendo em outras regiões do País. É urgente.

 

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