Em março de 2020, completando um ano de sua nomeação como secretário da Saúde do Ceará, Carlos Roberto Martins Rodrigues Sobrinho se viu diante de um desafio inédito: a pandemia causada pelo novo coronavírus. Dr. Cabeto, como é conhecido, comanda hoje o enfrentamento e prevenção da Covid-19. Em entrevista concedida ao O POVO no último dia 1º, o secretário da Saúde do Ceará comenta sobre o ritmo de vacinação contra a doença no Estado, o avanço da pandemia e as medidas restritivas adotadas. A conversa ocorreu dois dias antes do anúncio de que Fortaleza entraria em lockdown — e na entrevista já estavam dados os indicativos e as perspectivas.
O POVO - Estamos caminhando para um cenário pior que durante os meses de abril e maio de 2020, quando o Ceará passou por um pico de casos e óbitos?
Cabeto - Acho que estamos vivendo uma situação pior, por vários motivos. Primeiro porque o número de pacientes internados já é próximo do que a gente teve no pico. Segundo, porque hoje os doentes crônicos também estão nos hospitais; naquela época, tomamos a decisão de esvaziar os hospitais para deixar preparados para Covid-19 e o isolamento rígido fez reduzir todos os outros indicadores, permitindo a todo mundo trabalhar para atender só um tipo de doença. Hoje estamos atendendo os dois ao mesmo tempo e estamos com um volume, que a meu ser, vai ser maior. Terceiro que o número de pessoas jovens contaminadas aumentou muito. Isso reduz a mortalidade, mas faz com que o tempo de internação fique longo e aumenta a sobrecarga do sistema. Outro ponto é que estamos tendo contaminação em todos os bairros de Fortaleza ao mesmo tempo e em todas as regiões do Interior ao mesmo tempo. Em 2020, foi Fortaleza, depois Sobral, depois o Crato e aí por diante. Isso permitia um deslocamento de pacientes de uma região para outra e não vai ser possível na mesma intensidade. Vamos enfrentar uma situação muito mais grave, afora se a sociedade colaborar. É preciso uma compreensão cívica muito maior. Todos têm de colaborar, todos têm que sair de sua zona de conforto; as instituições públicas, instituições privadas, sociedade civil
OP - Outro indicador significativo é a quantidade de pessoas esperando transferências para leitos adequados aos seus casos. Mesmo com a abertura constante de leitos nas últimas semanas, essa fila já é expressiva.
Cabeto - Existe, sim, algum tempo de espera entre a pessoa ser atendida no local que não tem onde internar e acontecer a transferência para um leito. Vínhamos, há muito tempo trabalhando, para reduzir esse tempo de regulação. O que vem acontecendo? Os números estão aumentando de forma exponencial e o Estado está aumentando seu número de leitos. Só que isso está chegando perto do ponto de saturação. Se você tem o número de casos aumentando e a gravidade desses casos atendidos aumenta, você vê crescer o tempo de espera. Em março do ano passado, somente em torno de 10% dos pacientes precisavam ficar internados. Quando chegou em abril e maio, isso pulou para quase 50% e aí houve esgotamento dos leitos. A mesma coisa estamos vendo agora, só que mais paulatino. Outubro, novembro, dezembro… De janeiro para fevereiro teve um grande acréscimo e um terço dos pacientes precisando internar. Se não reduzirmos isso, a capacidade do sistema se esgota. Já está no limite e por isso há maior dificuldade para transferência.
OP - Qual tem sido esse tempo?
Cabeto - Antes o tempo era de poucas horas e hoje já passou para pouco mais de 12 horas.
OP - O que está sendo feito?
Cabeto - O Ceará tem estruturado uma rede, que a meu ver representa um milagre da doação das equipes e da capacidade de organização. Em menos de um de um mês aumentamos 600 leitos; isso é praticamente impossível em condições normais. Pegamos as Unidades de Pronto Atendimento (UPAs) e instalamos leitos de tratamento intensivo para que, enquanto esperam, esses pacientes sejam tratados como se estivessem em um hospital. Também modificamos a metodologia de trabalho dentro das UPAs; hoje elas contam com médico intensivista que faz visita diária aos leitos, número de enfermeiras mais adequado, fisioterapeutas especializados 24 horas. Isso será feito em todas as UPAs do Estado, primeiro em Fortaleza, e vai propiciar uma solução caso o sistema esteja saturado.
OP - A circulação da nova variante do coronavírus, a variante P1, no Ceará impacta para esse cenário?
Cabeto - É possível. Estamos montando tecnologia para fazer sequenciamento genético do vírus aqui para a gente poder acompanhar essa mudança epidemiológica. Hoje temos análise em curso, na Fiocruz, de 214 amostras, várias dessas estão quase prontas e tem sim um número grande de mutação P1. Essa mutação pode estar interferindo no perfil dos pacientes que estamos vendo. É de um nível de transmissibilidade e contágio muito maior, em uma população mais jovem com formas mais graves e com o tempo para início da fase inflamatória da Covid-19 um pouco mais longo.
OP - A vacinação pode ser uma esperança? Quando sentiremos seus primeiros efeitos coletivos sobre a pandemia?
Cabeto - O Ceará tomou uma medida muito acertada de colocar os idosos na vacinação de forma prioritária. Estamos próximo de vacinar 80% da população acima de 75 anos. Isso já se verifica como uma vantagem? Teremos que estudar, mas acredito que tem sim impacto na vacina. Nossa impressão é que quando chegarmos na população acima de 60 anos, já vamos começar a ter um grande impacto na mortalidade, na letalidade e no índice de contaminação. Se calcula que, quando chegarmos a vacinar 2 milhões de pessoas no Ceará, cerca de pelo menos 30% da população, o Estado estaria numa situação bem mais confortável e muito mais segura.
OP - Estamos ainda longe…
Cabeto - O Estado brasileiro não tem sido muito eficiente nesse quesito. Não só demorou para decidir sobre as aquisições de vacinas como não estabeleceu uma forma de prioridade nessas relações, né? Está precisando correr atrás. Graças a Deus temos duas instituições de peso, o Instituto Butantan e a Fiocruz, que tem tudo para ajudar o brasileiro com o início da produção de vacinas. Ainda está muito lento, mas está prometido acelerar agora em março. O ponto é que nós conhecemos de forma muito prática e objetiva que duas ações no mundo têm sido eficazes: isolamento estruturado e empenho na aquisição e aplicação das vacinas. O Brasil tem de fazer mea culpa, retardou as aquisições. Mas pode resgatar essa velocidade de vacinação tendo um empenho de fato nas suas relações diplomáticas e na estruturação da produção.
OP - E a imunização para grupos em vulnerabilidade, como as pessoas em situação de rua?
Cabeto - Tenho discutido essa questão da população de risco, além da população de rua. Não temos muita liberdade para fazer isso, porque somos obrigados a obedecer o PNI (Plano Nacional de Imunização). Gosto muito de citar outros países que vão em cima de vacinar os mais vulneráveis e aqueles que têm maior impacto em reduzir a transmissão viral, porque esse é um peso que tem que ser feito e temos indicadores sociais que podem embasar isso. Se a gente fizer a aquisição de vacinas pelo Estado e isso não for para o PNI, vamos pensar sobre isso. Mas, à medida que o tempo vai passando, acho que esse Pano vai ter que ser repensado.
OP - O governador Camilo Santana tem falado em buscar doses com laboratórios. Por que esse contato está sendo feito e como está essa situação?
Cabeto - O ritmo de vacinação, de compra de vacinas, está muito aquém do que esperávamos; as expectativas eram muito melhores do que estamos vendo na prática. Por isso, o Ceará está indo atrás. Eu pessoalmente enviei documentos a empresas como Pfizer, Sinovac, Astrazeneca mostrando o interesse do Estado na aquisição direta dessas vacinas. Mesmo que elas tenham que ser doadas ao governo federal pelo PNI, estaremos dando nossa colaboração. Há tratativas quase diárias com a indústria internacional, por meio de seus representantes na América Latina, para que essas aquisições aconteçam. Alguns já nos responderam dizendo que estão esperando a negociação com a União, é o caso da Pfizer, a quem procuramos desde o início. E outros estão estudando a possibilidade e um calendário para nos apresentar. Espero que isso seja em breve.
OP - Há um horizonte de quando a vacinação dos grupos prioritários será ampliada?
Cabeto - Pelo cronograma que o Ministério da Saúde nos passou, teoricamente, em março deveríamos estar vacinando as pessoas de 60 anos a 75 anos. Não temos ainda confirmação, porque a maioria das vacinas enviadas vieram do Butantan e as da Astrazeneca ainda não foram de produção da Fiocruz, são vacinas de importação. Acho que agora no começo de março vamos ter um cronograma mais real, com comprovações de se realmente vamos ter aquele volume de vacinas que estamos esperando.
OP - Temos assistido algumas medidas de maiores restrições sendo adotadas desde janeiro, se aprofundando no Carnaval e agora. Haverá mudanças mais duras pela frente?
Cabeto - Na medida em que os números pioram, e eles vêm piorando, nós temos aprofundado essas medidas. A discussão sobre fazer uma forma mais restritiva ou não, depende do índice de criticidade. Se as curvas (de casos, óbitos e internações) aplainam, mantemos as medidas como estão. Se elas pioram, essas medidas são aprofundadas. Do mesmo jeito que a gente fez na flexibilização, acompanhando os índices.
As ações estão pautadas em reduzir as atividades de aglomeração e alta disseminação viral e, ao mesmo tempo, proteger as atividades econômicas dentro do possível com um nível de responsabilidade alto. Quando você determina o lockdown, você leva em conta algumas coisas; a primeira delas é o nível de vulnerabilidade. Além daqueles dados que estão crescendo de forma geral, tem a questão de manutenção de insumos, material médico-hospitalar, medicamentos. Agora nós estamos retrocedendo e é preciso as pessoas entenderem que é necessário fazer esse sacrifício. Não existe economia sem uma pandemia controlada, isso é uma realidade que todo mundo já sabe. Todas as pandemias passadas tiveram grande impacto econômico e só tem um jeito de melhorar: controlar a pandemia, reduzir os números. É preciso acreditar na experiência do passado e acrescentar os aprendizados atuais. É preciso extremo bom senso e serenidade.
OP - Muitas pessoas não entendem as razões de limitar o funcionamento das atividades até determinado horário, como segue em diversos municípios do Ceará. Qual é a lógica dessas medidas?
Cabeto - É reduzir ao máximo a circulação viral. As grandes aglomerações, principalmente as clandestinas, acontecem no período noturno e foram essas aglomerações que ampliaram os surtos de Covid-19 no Ceará. Esses pequenos surtos, se tornaram grandes surtos; e foram surtos de uma classe social que viaja, que trouxe cepas diferentes, que possibilitou a expansão (da pandemia). Sei de reuniões de que 50% das pessoas saíram infectadas, isso desde setembro. A restrição de horários, principalmente nos fins de semana quando as aglomerações são maiores, é o mínimo necessário.
OP - E as aglomerações que aconteceram durante o período eleitoral?
Cabeto - O decreto sempre proibiu as aglomerações, o Estado não relaxou. Agora, decreto nenhum consegue ser cumprido se a população não colaborar. Teve descumprimentos de autoridades, teve que está inadequado e nós acionamos diversas vezes órgãos responsáveis pela eleição, para que aplicassem a lei.
Não se trata de culpar ninguém. É importante que a gente coloque as coisas a cada momento. Se agora é possível aprender, vamos aprender. Se agora é possível pedir que as pessoas entendam e tolerem um pouco mais esse sofrimento do isolamento, essa é a hora, né? Esse momento é crítico no Brasil e a gente precisa, de novo, ajudar os profissionais de saúde, eles estão muito cansados.
OP - Secretário, uma questão também muito discutida é a dos ônibus. O quão preocupantes são esses espaços enquanto locais de disseminação do vírus?
Cabeto - Quando a gente estava com circulação viral mais baixa, isso preocupava menos; mas isso é um erro. É um problema econômico, porque, conforme o tempo passou, a capacidade de responder à necessidade da população piorou. Houve uma restrição do número de ônibus por causa do faturamento dessas empresas, que são privadas. E também houve alguns enganos. Tínhamos horários diferentes de entrada no trabalho: era 8 horas para as repartições públicas e 9 horas, o comércio; de repente, estava todo mundo entrando às 8h. Isso também atrapalhou e fez aglomerar mais. A questão do transporte público precisa realmente ser corrigida porque as pessoas estão muito aglomeradas nos pontos e nos ônibus. Esse é um outro papel do isolamento, que também reduz essas aglomerações.
OP - Desde que acompanho política, todo governador quis ter o senhor como secretário da Saúde. Como o senhor se sente tendo aceitado esse cargo nesse momento, justo quando cai uma pandemia como essa?
Cabeto - Toda decisão tem um componente emocional grande. A decisão acho que foi muito mais emocional do que racional. Minha carreira não está ligada à gestão pública, está muito mais ligada à universidade, para onde vou voltar quando sair da secretaria, e à atuação médica na ponta, né? Mas eu fico feliz de ter aceito. Dá um enorme prazer poder colaborar. Não é fácil porque você não é compreendido e os conflitos são grandes quando você quer mudar as coisas, romper fronteiras. Não teria sentido aceitar se não fosse para isso, então eu já sabia que enfrentaria muitas dificuldades. Agora, o momento da pandemia trouxe muita aflição. Como profissional da saúde, foi extremamente difícil quando percebi, em fevereiro do ano passado, que a coisa seria muito grave. Ter a perspectiva do número de óbitos, era apavorante. Ao mesmo tempo, me surpreendi positivamente com a capacidade das pessoas em ajudar; tem muito mais gente ajudando que atrapalhando. Hoje me sinto com esperança, acredito que mesmo com tanto sofrimento sairemos melhor, e feliz pelo tempo que estou na Secretaria. Vou ficar por todo o tempo em que puder contribuir.
Com Érico Firmo