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Brasileiros "invisíveis" e a busca pelo ‘passaporte da cidadania’
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Brasileiros "invisíveis" e a busca pelo ‘passaporte da cidadania’

De autoria da jornalista Fernanda da Escóssia, a publicação conta os dramas de pessoas indocumentadas; lançamento será nesta segunda-feira, 25
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Jornalista Fernanda da Escócia, autora do livro
Foto: Arquivo pessoal Jornalista Fernanda da Escócia, autora do livro "Invisíveis: uma etnografia sobre brasileiros sem documento"

A pandemia da Covid-19 jogou luz sobre desigualdades que antes pareciam imperceptíveis aos olhos da sociedade e do Estado. A crise sanitária afeta principalmente os brasileiros com pouca escolaridade, baixa renda e que sobrevivem exclusivamente do trabalho em atividades informais. Um grupo que, segundo a Fundação Getúlio Vargas (FGV), pode chegar a 38 milhões de pessoas. Muitas delas, chamadas pelo ministro da Economia Paulo Guedes de “invisíveis”, tiveram a atenção do Governo Federal pela primeira vez em meio ao lançamento do auxílio emergencial, benefício que garantiu o mínimo para quem já vivia com muito pouco.

Mas a ajuda, definitivamente, não chegou a todos que precisam dela. E mais do que isso, faltou a milhões. Uma parcela expressiva da sociedade que, para fazer jus ao triste histórico de desigualdades estruturais, continua invisível. Estamos falando dos 3 milhões de indocumentados, brasileiros adultos que vivem sem certidão de nascimento e todos os demais documentos que garantem direito à cidadania. O número, calculado pelo IBGE ainda em 2015, pode ser maior no Brasil de 2021.

Sem documentos, esses brasileiros não só deixaram de receber a ajuda emergencial paga pelo Governo como também não conseguem ter acesso a direitos básicos garantidos pelo Estado. Por trás de cada indocumentado, há histórias que nem os registros formais conseguem explicar. Algumas delas são narradas no livro “Invisíveis: uma etnografia sobre brasileiros sem documento”, escrito pela jornalista e professora universitária Fernanda da Escóssia. A publicação será lançada oficialmente nesta segunda-feira, 25, às 18horas, com transmissão ao vivo pelo canal da FGV no YouTube.

Durante dois anos, a autora abriu olhos e ouvidos para conhecer histórias de brasileiros sem cidadania reconhecida. Na pesquisa, que deu origem à sua tese de doutorado, ela mergulhou na rotina de um serviço público destinado à emissão de registros civis, em uma praça, no Centro do Rio de Janeiro. À medida que passou a conhecer o histórico dos personagens, a jornalista compreendeu que para eles, o registro significava muito mais do que um atestado de nascimento. Era também um comprovante de dignidade.

No país das burocracias e formalidades que transformam cidadãos em números (CPF), viver sem documentos pode custar a própria vida. O livro causa essa reflexão ao contar a história de uma mulher que precisava de uma cirurgia para tratamento de um câncer, mas foi rejeitada nos hospitais por ser indocumentada. Pelo mesmo motivo, outros personagens relataram não conseguir emprego ou ter acesso à educação. Mas em meio há tantos dramas, há também histórias como a de Valderez, que graças à busca pelo ‘passaporte da cidadania’, reencontrou uma irmã de quem havia sido separada há mais de vinte anos.

Na entrevista a seguir, Fernanda da Escóssia conta os bastidores da obra e revela como surgiu o interesse por histórias de brasileiros invisíveis. A autora parte da premissa que o fenômeno da indocumentação, assim como a maioria dos problemas estruturais da sociedade, reflete um histórico processo de desigualdades.

O POVO - Como surgiu o interesse em mergulhar neste assunto?

Fernanda da Escóssia - Comecei a me interessar por esse tema como repórter, ainda quando trabalhava no jornal Folha de S.Paulo. Eu sempre cobri temas na área de direitos humanos e, no final de 2002, ao acompanhar o lançamento das Estatísticas do Registro Civil produzidas pelo IBGE, me deparei com esse número: 20,2% das crianças nascidas em 2001 não tinham sido registradas no mesmo ano ou no primeiro trimestre do ano seguinte. Propus uma reportagem mostrando esse problema, e ela foi publicada em 1º de janeiro de 2003, com o título "País forma gerações de sem-documentos". Percebi que, de fato, era um problema que passava de geração em geração, pois, se os pais não têm documentos, não conseguem registrar os filhos.

Aquilo me impressionou profundamente, pois eu não sabia que a indocumentação era algo tão frequente. Desde então segui acompanhando o tema como jornalista. Voltei a escrever sobre o tema em duas séries no jornal O Globo, em 2005 e 2014. Foi em 2014, para essa série no Globo, que conheci o ônibus da Praça Onze, um serviço público e gratuito, ligado ao Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, especializado em atender pessoas indocumentadas.

Quando entrei no doutorado, resolvi abordar o tema não só com as ferramentas do jornalismo, mas também das ciências sociais, investigando mais a fundo as trajetórias das pessoas indocumentadas, o significado que atribuíam ao documento e de que forma a busca pela certidão de nascimento mobilizava conceitos de cidadania, exclusão e direitos.

O POVO - Qual foi o percurso até chegar aos personagens?

Fernanda da Escóssia - Para a pesquisa do doutorado, optei pelo método etnográfico, com observação participante. Eu acompanhei por mais de dois anos o atendimento realizado no ônibus, que funciona toda sexta-feira no pátio do Juizado da Infância, da Juventude e do Idoso, na Praça Onze, centro do Rio de Janeiro, pertinho do Sambódromo. Observei a fila, as entrevistas realizadas pelos técnicos do serviço com os indocumentados, as audiências... Eu conversava com as pessoas, observava, me identificava, dizia que estava fazendo uma pesquisa e pedia que elas me contassem suas vidas. Agradeço demais a essas pessoas que me escolheram para ouvir suas histórias de vida e a toda a equipe do ônibus que permitiu acompanhar o trabalho.

O POVO - O que os personagens do livro têm em comum além do histórico de 'indocumentação'?

Fernanda da Escóssia - A falta de documentação é um tema transversal, que dialoga com a exclusão e a desigualdade tão marcantes na sociedade brasileira. Em geral, são pessoas pobres ou muito pobres, de baixa escolaridade. Também se relaciona com o racismo e o machismo estruturais.

Muitas das pessoas que entrevistei ao longo da pesquisa são negras, e uma das mulheres me relatou que sua mãe não quis registrá-la porque a considerou "muito preta". Outra história muito marcante para mim é a de Monique, que me contou que seu pai só registrava os filhos homens. "Mulher não precisa de registro", ele dizia em casa. A existência desses brasileiros indocumentados reflete toda a desigualdade que é marca da sociedade brasileira.

O POVO - Como os “invisíveis” conseguem viver em uma sociedade burocrática do ponto de vista social?

Fernanda da Escóssia - São existências construídas nas margens do Estado, e recorro aqui ao conceito usado pelas antropólogas Veena Das e Deborah Poole, que nos falam das margens não como um lugar geográfico, mas um lugar de sentido, em que direitos podem ser mais facilmente violados. E assim se passa com os indocumentados. Eles vão negociando, vivendo suas existências nas margens desse Estado, buscando soluções provisórias.

Como não têm certidão de nascimento, não possuem nenhum outro documento, como RG, carteira de trabalho ou título de eleitor. Não votam nem conseguem emprego formal. Essas pessoas indocumentadas têm acesso limitado a saúde e educação e não podem ser incluídas nos cadastros dos programas sociais. Conheci pessoas que queriam o documento para poder fazer tratamento médico – sem documento, conseguiam apenas atendimento emergencial.

O POVO - Das histórias narradas, qual a que mais chamou sua atenção?

Fernanda da Escóssia - São muitas, e agradeço igualmente a cada pessoa que concordou em abrir seu coração e dividir comigo sua história de vida. Cada uma delas iluminou um aspecto da pesquisa. A dona Elisabeth lutou para conseguir o documento do filho, que estava preso e que ela não visitava fazia mais de dois anos, porque ele não tinha identificação.

A Rita me contou como se sentia envergonhada por não ter documentos, como se a culpa fosse dela, e esse é um sentimento comum aos indocumentados. A Monique me alertou para a exclusão de gênero e o protagonismo das mulheres na busca pela documentação.

A Valderez tinha um documento sem valor e, na busca pelo documento original, reencontrou uma irmã que não via fazia mais de 20 anos. Entendi, pela trajetória dela, que a busca do documento trazia consigo a recuperação da própria história e a reconstrução dos laços familiares.

O POVO - Os indocumentados são cidadãos brasileiros, brasileiros sem cidadania ou nem reconhecidos como brasileiros são?

Fernanda da Escóssia - Legalmente, são brasileiras e brasileiros indocumentados dentro de seu país.

6 - Para quem chegou à vida adulta sem certidão de nascimento, o valor desse documento transcende o formalismo burocrático?

Fernanda da Escóssia - Certamente. A ausência do documento é muito associada ao elemento suspeito, como mostram os estudos de Mariza Peirano e Letícia Ferreira, e os relatos que obtive na pesquisa de campo reiteram isso. Assim, o documento é associado à identidade, à dignidade, à busca por direitos.

Uma das mulheres que conheci no ônibus, a dona Maria da Conceição, queria um documento para fazer um tratamento contra o câncer. Ela me dizia: “Sou uma pessoa que não existe”. Conseguiu a certidão de nascimento, tirou todos os outros documentos, fez o tratamento e passou a levar outras pessoas indocumentadas até o serviço. Ela faleceu, infelizmente – mas conseguiu ser enterrada com identificação. Tinha muito medo de morrer e ser enterrada como indigente. Dizia que a certidão de nascimento para ela valia mais que ouro, e acho que esse sentimento dela se repete em muitas pessoas que conseguiram seus documentos.

O POVO - O Estado tem feito algo de efetivo para garantir cidadania aos “invisíveis”?

Fernanda da Escóssia - Desde 2003, começou no governo Lula um projeto de melhoria do acesso à documentação, e em 2007 foi firmado um compromisso nacional de redução do sub-registro, com a criação de comitês nos Estados e nos municípios. A implementação do Bolsa Família foi fundamental para reduzir a proporção de indocumentados, pois, para ter o benefício, é preciso que todos da família tenham documentos. Assim, o Brasil tem excelentes resultados na redução do sub-registro de crianças, que caiu de 20,2% em 2001 para praticamente zero. Mesmo assim, ainda há, como mostra a pesquisa, muitos brasileiros adultos sem documento. Outro passo importante foi a instalação de cartórios nas maternidades, e isso ajudou a reduzir o sub-registro de crianças.

O POVO - Do que os indocumentados mais precisam além do direito de exercer a cidadania?

Fernanda da Escóssia - Precisam de uma estrutura pública que não transforme o indocumentado em culpado pela sua situação e não exija dele carimbos, deslocamentos e atestados que, para ele, são difíceis de obter. Algumas pessoas necessitam apenas de uma segunda via de um documento – mas não conseguem fazer as pesquisas necessárias ou ir ao local buscar esse papel. A segunda via, assim, se torna inacessível. Seria importante que o arcabouço burocrático estatal, em vez de reproduzir a indiferença com que essas pessoas são recebidas ao longo de anos, oferecesse acolhimento e soluções. É preciso também que estados e municípios fortaleçam seus comitês de combate ao sub-registro, pois eles têm sido fundamentais para localizar os indocumentados e ajudar nesse percurso em busca da documentação. Por fim, melhorar e integrar os mecanismos e sistemas de busca de documentos, além de insistir na importância de registrar crianças logo que nascem.

Perfil da autora

Por Fernanda da Escóssia

Sou jornalista, me formei pela Universidade Federal do Ceará (UFC) e comecei como repórter no jornal O POVO. Trabalhei na TV Verdes Mares e na TV Ceará.

Mudei-me para o Rio em 1994. Sou mestra em Comunicação pela UFRJ, doutora em História, Política e Bens Culturais pelo CPDOC/FGV. O livro resulta da tese de doutorado, defendida em 2019, sob orientação da professora Letícia Ferreira.

Trabalhei na Folha de S.Paulo, em O Globo e fui ombudsman da Agência Lupa. Sou editora na revista Piauí.

Sou professora-substituta da Escola de Comunicação da UFRJ, onde leciono disciplinas como Jornalismo e Direitos Humanos, Jornalismo Político, Reportagem e Redação Jornalística.

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