O mês passou, mas a causa fica. A campanha Janeiro Branco objetiva chamar a atenção das pessoas para questões e necessidades relacionadas à saúde mental e emocional. Falar de saúde mental em um país como o Brasil, que ainda nutre um estigma considerável sobre este tipos de doença e que lidera rankings de transtornos mentais, pode parecer contraditório, mas é tecla importante a ser batida com frequência pelos mesmo motivos.
Em meio ao preconceito, discussões recentes sobre saúde mental protagonizadas na edição 2021 do Big Brother Brasil (BBB) e publicações recentes de atletas como Simone Biles e Gabriel Medina, que expuseram a vulnerabilidade mental como motivo para o afastamento de competições, tornam o caminho mais propício para que o tabu construído sobre esses tipos de doença possa ser quebrado aos poucos.
Mariana Ferrão, jornalista, fundadora e CEO da Soul.Me, empresa especialista em saúde e bem-estar que oferece palestras, retiros, cursos, jornadas e conteúdos com o objetivo de transformar a vida das pessoas, dimensiona a importância das discussões sobre doenças mentais a partir de suas próprias vivências.
A jornalista começou a cuidar da saúde ainda na adolescência, aos 17 anos, após quadro grave de depressão e síndrome do pânico. Segundo relata, Mariana chegou a contemplou a possibilidade de suicídio diversas vezes, mas, felizmente, perseverou. Mãe de dois filhos, ela não nega o medo de a doença reaparecer.
Apresentadora do programa Bem Estar da Rede Globo por oito anos, Mariana Ferrão é hoje executiva e comanda o Conexão VivaBem, do UOL. E, além disso, é uma voz sobre um tema sempre urgente.
O POVO - Mariana, a sensação que temos é a de que, nos últimos anos, as doenças mentais estão sendo muito mais comentadas e que as pessoas se sentem mais livres para falar sobre isso. Você tem alguma teoria sobre o porquê disso estar acontecendo?
Mariana Ferrão - Eu acho que essa discussão é um sinal do quanto a gente evoluiu nos últimos tempos. Eu tive uma depressão aos 17 anos, numa época que não existia redes sociais e que eu não conhecia nenhum outro adolescente da minha idade que estava passando pela mesma coisa. Então, nós estarmos mais propensos a falar sobre isso, é uma conquista. Acredito que muitos fatores contribuíram para essa conquista, a começar pelas atitudes de atletas como Michael Phelps, Simone Biles e, mais recentemente, Gabriel Medina, que fizeram postagens nas redes sociais expondo o seu quadro de saúde mental.
Essas pessoas são consideradas ícones e nós só costumamos acompanhar o desempenho fantástico delas em uma prova ou em um campeonato. Quando elas assumem que estão sob pressão, que elas não são heróis o tempo inteiro que a gente acha que elas são, elas dão o exemplo para nós sentirmos e não considerarmos o que estamos sentindo algo anormal.
Acho que a mídia também tem um papel muito importante nesse processo. Eu lembro da primeira entrevista que eu dei sobre depressão, em 2011, gerou várias mensagens que eu recebi em que as pessoas falavam “vai lavar uma louça, que melhora”, “pobre não tem tempo pra ter depressão”, essas e outras coisas que a gente ainda escuta muito.
Em 2018, quando eu fui chamada pra fazer o TEDx, em São Paulo, e a frase que me veio na cabeça pra abrir a palestra foi: “Eu já tentei me matar”. Eu nunca tinha dito essa frase a ninguém a não ser o meu psiquiatra. Meus filhos não sabiam dessa frase. Mas é uma verdade tão profunda que eu queria que os meus filhos fossem as primeiras pessoas a saber. Eu estava com muito medo do julgamento do público quando falei sobre isso, mas depois recebi milhares de mensagens que me deixaram muito triste. Uma delas foi de uma pessoa que tinha sido expulsa de uma residência médica porque estava com depressão. Ela falou assim: “Eu queria que essa doença sangrasse pra que as pessoas pudessem entender a minha dor”.
Então, quem está passando por isso se sente, além de tudo, incompreendido. Muitas vezes, não legitimam a dor dessas pessoas. Você já está ali se sentindo mal e vem alguém que não consegue te entender. É um ciclo vicioso.
Isso acontece muito nos ambientes de trabalho também. Existem gestores incapazes de entender o que é um quadro de depressão. Acredito que a culpa disso recai sobre um sistema em que a gente vive e que é um sistema de pressão e de competitividade. Mudar esse sistema inclui, primeiro, algo revolucionário e de autorrespeito. Mas como seria esse ato de autorrespeito? Porque as condições que a gente encontra no país são muito diversas, vai ter gente que vai poder pegar o telefone e mandar mensagem para o psiquiatra que já conhece, e outras pessoas que não vão ter essas condições. Então os caminhos são muito diversos. Precisamos construir essas redes de apoio para que todas as pessoas possam trilhar esse caminho de autorespeito.
O POVO - Dando uma olhada em suas redes sociais encontramos um vídeo em que você fala sobre mudança de hábito e sobre como isso é difícil. Geralmente as pessoas têm um ponto de partida, certo? Ou isso também é possível só com força de vontade?
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Mariana - A Elisama Santos, escritora e psicanalista, fez uma colocação interessante para uma revista em que ela fala “voltei a fazer exercícios físicos, tenho me alimentado lindamente e tô bem feliz com isso. Eu poderia começar o discurso manjado das redes sociais, de que eu tô cuidando da minha saúde, que basta querer, que uma mudança de postura mudou tudo ao meu redor, mas isso é uma enorme mentira”.
O que é essa força de vontade? De onde ela vem? Primeiro precisamos entender isso. Há muito isso no que a Elisama Santos discute. Ela traz a realidade de pessoas que estão apenas lutando para colocar o prato do dia na mesa. A força de vontade dessas pessoas está voltada para a sobrevivência, então como elas vão tirar um tempo para cuidar de suas saúdes mentais?
O que eu percebo ao longo da minha experiência de trabalho em jornalismo de saúde, há mais de uma década, é que é muito difícil a gente mudar sem ter uma dor muito forte. A dor é um grande motivador de mudança. Eu lembro que depois que eu comecei a melhorar da depressão, as minhas amigas começaram a me chamar para sair, e eu sabia que isso iria interferir na minha rotina de atividades físicas, sono e alimentação. Aqueles eram os pilares que eu havia construído para melhorar a minha saúde e eu tinha medo que, ao modificar um pouco daquilo, a depressão voltasse.
Minhas amigas diziam “nossa, Mari, você está muito disciplinada, tem muita força de vontade” mas, na verdade, o que elas não sabiam era que eu sentia medo. Quando você sente essa dor e esse medo de voltar ao que era antes, a sua motivação aumenta.
A morte, por exemplo, é o nosso destino menos questionável; mas também é o menos palpável. Todos nós sabemos que vamos morrer um dia, mas ninguém sabe como é, de fato, a morte. Daí o motivo para pessoas que fumam dificilmente pararem de fumar quando alguém diz que fumar mata. A força de vontade pode ser algo temporário, uma motivação por algo que você queira fazer no futuro, mas aí vem a vida, e os imprevistos e as incertezas; e esse cenário de pandemia é um cenário de profundas frustrações. Não há força de vontade que resista todos os dias à frustração.
A força de vontade precisa vir de um lugar tão profundo quanto os obstáculos, para que você consiga ultrapassá-los ainda ligado a sua motivação. E como você encontra essa força? Não sei, cada um precisa buscar a sua. A minha foi o medo de voltar a querer me matar.
O POVO - Mariana, e como as pessoas que estão ali, lado a lado, com familiares, amigos ou conhecidos que estão passando por essa dor, como expressar esse apoio?
Mariana - Simplesmente estar presente. Quando você não sabe o que fazer, oferece ao outro a possibilidade da pergunta. O primeiro passo é abrir o coração, parar ao lado da pessoa e dizer “eu tô aqui. Eu tenho parte do meu tempo, minha presença e a minha atenção para oferecer”. Como o outro vai querer usar o ser tempo, a sua presença e a sua atenção é uma decisão do outro, ele pode, inclusive, recusar; e tá tudo bem, você se retira.
A Karina Fukumitsu, a psicóloga que trabalha comigo na Soul.ME, fala uma frase que eu acho maravilhosa: “A dor é do sentiDOR”, ou seja, quem tá sentindo aquilo é a pessoa, ela que tem que dizer pra gente o que ela quer que a gente faça. Isso se ela conseguir dizer, porque às vezes a depressão é tamanha que a pessoa não consegue nem dizer o que ela está sentindo.
Eu falo isso por experiência própria porque, na época que eu estava deprimida, na minha mãe falou “vamos ao psiquiatra”, eu não conseguia pensar em colocar uma roupa, abrir a porta do meu quarto, apertar o botão do elevador, descer sete andares, abrir a porta do carro, entrar dentro do carro e fechar a porta do carro. O deprimido tem muito essa decomposição da realidade, sabe? Como se a gente estivesse vendo um filme quadro a quadro, e a gente pensa muito em cada um deles, porque é como se cada segundo da nossa vida fosse um peso tão grande que a gente acha que não consegue vencer.
Então você dizer para uma pessoa que está deprimida “vamos ao psiquiatra. Eu aperto o botão do elevador; eu te ajudo a escolher uma roupa; eu entro no carro com você; eu vou de mãos dadas com você até a porta da consulta” já é de grande ajuda.
Outra coisa absolutamente fundamental é não esquecer que, a pessoa que está ao lado de uma pessoa deprimida há tempos, também está em sofrimento. Se você pega, por exemplo, uma mãe de um adolescente que se tranca no quarto e começa a se cortar, essa mãe também sofre tentando entrar em contato com esse filho. Não podemos colocar toda a carga nessas pessoas que estão ali ao lado, porque elas também precisam de ajuda. Antes de ajudar o outro, também precisamos nos ajudar.
O POVO - Mariana, como mãe, como você repassa os seus conhecimentos para os seus filhos? Você começou a cuidar da sua saúde bem cedo, certo? Aos 17 anos. Apesar dos seus filhos ainda não terem essa idade, você já tenta inserir certos hábitos nas rotinas deles? De qual forma?
Mariana - A primeira coisa é validar aquilo que eles estão sentindo. Estar presente ao lado deles o tempo todo, entendendo, reparando e ajudando eles a identificar aquilo que eles estão sentindo. Então, por exemplo, uma criança cai e começa a chorar, o que a maioria das pessoas faz? “Levanta, não foi nada, nem doeu”. Como nem doeu? A criança tá chorando, os pais ou tutores precisam reconhecer aquilo.
O mesmo acontece quando o brinquedo que a criança está brincando quebra. Naquele momento, não tem nada mais importante para ela do que aquele brinquedo que quebrou, ainda mais se for um brinquedo de estimação. O que a maioria das pessoas faz nesse caso? Dizem “vamos brincar com outra coisa” ou “vou comprar outro”, mas esse era o brinquedo que quebrou era o favorito da criança. Nós, pais, precisamos entender isso e validar o sentimento das crianças.
Teve uma acontecimento que foi muito marcante para mim que foi um dia em que eu estava fazendo massagem no João, que é o meu filho mais novo, e o meu meu filho mais velho, Miguel, entrou no quarto. O Miguel ia tomar banho, mas viu que eu estava fazendo massagem no João e ficou com ciúmes. Eu abracei o Miguel com uma toalha e falei “eu estou vendo que você ficou com um ciúmes do tamanho da lua”, ele olhou para mim e disse “ não, mamãe, não é do tamanho da lua, é do tamanho de Júpiter”, ou seja, o que eu fiz naquele momento foi ajudar ele a nomear o que ele estava sentindo.
Quando eu ajudo ele a nomear que aquilo é ciúmes, e que eu estou ali pra ele, que eu posso dar banho nele e depois também fazer massagem nele porque eu sou adulto da relação, ele se acalma.
O POVO - No vídeo de apresentação no site da Soul.ME você diz que tem explorado várias técnicas – milenares e inovadoras – para mudar os seus hábitos. Quais seriam essas técnicas?
Mariana - Nós trabalhamos quatro arquétipos (mestre, sábio, curador e visionário), que são essas forças milenares ancestrais que estão dentro e se manifestam de formas diferentes em cada um de nós. Mas como acessamos esses arquétipos? Quando a gente está falando do curador, por exemplo, estamos falando de um contato muito profundo com o nosso coração. Uma jornada de tambor, por exemplo, é uma das práticas em que você consegue acessar o seu curador interno, porque o ritmo do tambor conecta a gente com esse ritmo que todos nós temos dentro de nós, que é a batida do nosso coração.
Nós estamos vivendo em um ritmo voltado para a produtividade e para a competitividade, algo que não tem nada a ver com esse nosso ritmo interno. Então, através disso, que é uma técnica milenar, mas também inovadora, nós conseguimos acessar nossos arquétipos.
Nós também utilizamos muito na jornada da Soul.ME, o Unboxing Me, a leitura de livros e perguntas sobre aquilo que estamos lendo. Então, a gente parte, por exemplo, da questão do curador. O curador é alguém que está com o coração forte e límpido, mas como sabemos se estamos nessas condições? Então aí tem perguntas para a gente descobrir isso. Existe uma situação na sua vida que você tem dificuldade de tomar decisão? O que isso quer dizer do ponto de vista do arquétipo do curador? Quer dizer que o seu coração não está límpido.
Nós não estamos acostumados a fazer isso porque ocupamos o nosso tempo com N coisas.
O POVO - Qual é a diferença entre a jornada de autoconhecimento e uma terapia psicológica ou uma sessão de coaching, por exemplo?
Mariana - Primeiro, a jornada não tem pretensão de ser uma sessão de terapia, porque não exploramos questões particulares das pessoas que participam. Nos baseamos no livro “Caminho Quádruplo”.
As terapias possuem vários métodos, mas quando você entra em uma terapia, você não entra com prazo de término. A pessoa pode até começar a jornada querendo resolver um problema específico, mas ali ela vai entender que não é só sobre aquele problema e que ela vai entender quem ela é. Essa é a proposta.
O que eu quero dizer é que, talvez a jornada tenha objetivos parecidos com os da terapia, mas o método é completamente diferente.
A outra parte do método, que eu acho que é um diferencial, é a possibilidade de aprender na troca com os outros participantes. Cada um tem uma visão diferente, apesar do território ser comum. Então é muito diferente de um processo de terapia individual, mas com um objetivo semelhante aos da terapia e aos do coaching.
Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), o Brasil ocupa a primeira posição em ansiedade, com mais de 18 milhões de pessoas (cerca de 9,3% da população) sofrendo com a doença. Dados de 2019 mostravam também que 86% dos brasileiros sofrem com algum transtorno mental.
A Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP) registra que, durante a pandemia, os atendimentos psiquiátricos aumentaram em até 25% e 82,9% dos pacientes observaram um agravamento de suas condições mentais. Transtornos como ansiedade e depressão são relacionados em 96,8% com 12 mil casos anuais de suicídio que ocorrem no País, conforme a ABP.
Em estudo recente da revista científica The Lancet, os dados indicam que os casos de depressão aumentaram 28% e os de ansiedade cresceram 26% no mundo, em 2020, devido à pandemia.
Estima-se que cerca de 800 mil pessoas no mundo tiram a própria vida a cada ano, sendo essa a segunda principal causa de morte entre jovens com idade de 15 a 29 anos.