Doutora em Relações Internacionais, Stephanie Gimenez Stahlberg é pesquisadora associada do Laboratório de Estudos sobre Pobreza, Governança, Violência da Universidade de Stanford, nos Estados Unidos. Em sua tese de doutorado "The Dark Side of Competition: Organized Crime and Violence in Brazil" ("O Lado Sombrio da Competição: Crime organizado e Violência no Brasil", em tradução livre), defendida em outubro de 2021, ela desenvolveu metodologia inovadora que a permitiu analisar impacto da disputa entre facções no País.
A partir de dados de pesquisas no Google entre 2004 e 2019, Stephanie pôde traçar, por exemplo, um índice de competição que analisa em quais estados o conflito entre as três maiores facções do Brasil (Primeiro Comando da Capital, Comando Vermelho e Família do Norte) se dá de forma mais intensa, sem predomínio de uma organização sobre outra. A análise mostrou que o Ceará foi, em 2019, a unidade federativa que apresentou o nível de competição mais alto do País.
Ainda conforme a pesquisa, em média, entre 2004 e 2019, estados com a presença das três facções tiveram taxas de homicídios 46% mais alta do que os com predomínio de um dos grupos. “Controlando por outros fatores que influenciam a taxa de homicídios, como a renda média do estado, a taxa de urbanização e a localização geográfica do estado, o meu estudo mostra que a presença das três grandes facções aumenta a taxa de homicídios em 5 pontos (5 mais homicídios por 100 mil pessoas)”, afirma Stephanie. “Para um estado como o Ceará, um aumento de 5 pontos equivale a 459 mais homicídios por ano”. O impacto das facções para as taxas de homicídios, entretanto, é ainda maior, já que o recorte da pesquisa não leva em conta facções regionais, como o caso cearense “Guardiões do Estado” (GDE).
O POVO: Qual o objetivo inicial da senhora quando começou a pesquisa?
Stephanie Gimenez Stahlberg: Meu objetivo era entender qual o papel das facções nas taxas de homicídios do Brasil, olhando tanto ao longo do tempo, umas décadas atrás até hoje; como também comparando os estados, por que as taxas são tão altas em alguns estados e qual seria o papel das facções nisso.
E, aí, como é difícil ter dados sobre as facções, ainda mais de todos os estados e de todos esses anos, eu fui tentando buscar uma metodologia diferente para poder criar uma base de dados nova sobre as facções. Foi aí que eu tive a ideia de usar os dados de busca do Google. Já havia sido usado em outros tipos de pesquisa — para ver a propagação de doenças infecciosas, como gripe e até Covid —, mas não havia sido usado nessa área de segurança pública, grupos criminais. Então, eu testei para ver se era interessante, falei com alguns especialistas para ver se o que eu estava vendo nos dados condiz com o que se sabe, onde as facções começaram, para quais estados elas foram ao longo do tempo, quais estados têm uma presença maior… E vi que, realmente, esses dados do Google podiam ser muito úteis, porque condizem muito bem com o que já se sabia e preenchia em alguns campos em que não se tinha informação ainda — quando elas surgiram em certos estados, qual que era o nível de presença de cada uma em cada estado e tal.
OP: Por que a senhora focou em PCC, CV e GDE?
Stephanie: Eu foquei nas três maiores (facções) porque não daria para focar em todas as menores pela questão dos dados do Google. São essas facções que são as maiores responsáveis pela violência, elas tendem a fazer acordos, alianças, com as facções mais regionais, locais. Então, focando nas três maiores, já dava bastante informação.
Eu também trato não só da presença das facções. Eu estudo esse tema já há um tempo, li bastantes trabalhos que já foram realizados na área. Então, eu sei que não é só a presença de uma facção que importa para o nível de violência. É o caso de São Paulo, que é a capital do PCC, um lugar onde a facção tem uma presença gigante, mas o nível de violência de São Paulo cai e continua caindo. Então, não é só a presença de uma facção, mas a competição entre facções diferentes, é o fato de uma facção ter o predomínio sobre as outras. Então, eu não queria olhar só a presença, mas também o nível de atividade de cada uma. E, olhando esses dados do Google, eu pude ver que alguns estados realmente uma facção tem presença muito maior que as outras. É o caso do PCC em São Paulo, no Paraná, no Mato Grosso do Sul. Eu pensei que ia encontrar alguns outros estados onde talvez o Comando Vermelho tivesse uma presença maior que o PCC, mas eu encontrei, realmente, uma expansão maior do PCC, que está presente em todos os estados. Então, essa foi uma surpresa.
E o estudo confirmou essa tese de que não é só a presença da facção, mas também o nível de competição entre elas (que impacta os índices de violências). Os estados onde não tem uma facção que é mais dominante e as três (maiores facções) estão presentes o nível de violência, realmente, é mais alto.
OP: Como funciona esse índice de competição que você criou a partir do Google? Como é que o Ceará chegou à primeira posição?
Stephanie: Para calcular esse nível de competição, eu olho para o número de buscas no Google para cada facção em cada ano. O nível de competição ser alto no Ceará quer dizer que o interesse no Google de busca pelas três facções é próximo, mais que em outros estados. Não quer dizer que o Ceará tem o maior número de membros de cada uma dessas facções.
OP: E, aí, consequentemente a taxa de homicídios tende a aumentar, não é isso?
Stephanie: Sim. Há outros estados que parece haver um número maior de membros, mas, quanto ao nível de competição das facções, delas terem essa atividade próxima uma da outra, isso o Ceará se destaca. Segundo os especialistas com quem conversei é por esse interesse estratégico, por causa da exportação de drogas. E eu acho que também explica o motivo das três facções estarem presentes no Ceará já há muito tempo. Não encontrei nenhum estado onde em 2004 já aparecem as três facções.
OP: Há informações na pesquisa sobre o que gerou esse grau de competição no Ceará e a consequente guerra entre elas? E no Brasil?
SGS: Conversando com os especialistas que estudam essa trajetória mais de perto, eles dizem que a expansão é por conta das rotas do tráfico de drogas. O PCC, inicialmente, focou mais na região do Paraná, do Mato Grosso do Sul, atravessando São Paulo. Em 2016, mais ou menos, passaram a controlar totalmente aquelas rotas, depois do assassinato do Jorge Rafaat, que era um grande traficante da região. Os especialistas confirmam que a partir dali o PCC passou a controlar aquelas rotas, que também são conhecidas como Rota Caipira. A região que o PCC ainda não tinha controle, tinha outra facção local, era a região Norte, onde a Família do Norte tinha uma presença muito grande. Então, para o PCC, a questão da expansão para a região Norte, para a região Nordeste também, é para também ter influência e controle das rotas que entram pela parte Norte, que são muito importantes por causa da proximidade dos países produtores de cocaína.
E, para o Comando Vermelho, também seria porque essas rotas também agora são controladas pelo PCC. E o Comando Vermelho não pode ficar na mão do PCC. Para eles, haveria um interesse muito grande em tentar o controle da região Norte. Fizeram aliança com a Família do Norte, depois a aliança caiu. O Comando Vermelho, por exemplo, tem um nível de atividade nos últimos anos da minha pesquisa, 2018 e 2019, mais alto no Acre que no próprio Rio de Janeiro — não pelo número de membros, mas seria pelo número de membros per capita, de acordo com esse meu indicador do Google Trends. O Comando Vermelho investiu muito nessa região por essas rotas mais ao Sul estarem na mão do PCC. E a Família do Norte, por ser a facção local, tentando defender e manter o controle que eles tinham inicialmente das rotas passando pelo Amazonas.
Os especialistas que conhecem bem o PCC falam que a facção não está expandindo para outros estados para controlar as comunidades, o varejo da venda de drogas. Eles querem controlar as rotas do tráfico, que trazem as drogas dos países vizinhos, passando pelo Brasil, para ser distribuída no País e continuando para serem exportados para fora.
E o conflito depende muito das alianças que eles têm entre eles. Eu comparo esse papel das facções (nas taxas de violência) antes e depois de 2016, quando foram quebradas as alianças. Depois de 2016, realmente, nos estados onde eles têm competição alta, aumentou a violência bem maior que aumentou antes, quando eles tinham aliança.