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Padre Lício: "Falar de suicídio é falar de outro tabu, a saúde mental"
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Padre Lício: "Falar de suicídio é falar de outro tabu, a saúde mental"

Líder religioso, que viaja pelo Brasil para discutir o tema, aponta a importância do acolhimento de pessoas com ideações suicidas e de cuidados com o luto de sobreviventes
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FORTALEZA, CE, BRASIL, 27.04.2022: Aguanambi 282 - Padre Lício de Araújo Vale fala sobre suicidio e luto. (Foto:Thais Mesquita/OPOVO) (Foto: Thais Mesquita)
Foto: Thais Mesquita FORTALEZA, CE, BRASIL, 27.04.2022: Aguanambi 282 - Padre Lício de Araújo Vale fala sobre suicidio e luto. (Foto:Thais Mesquita/OPOVO)

A prevenção do suicídio só é eficaz com a difusão de informações, discussões sobre saúde mental e políticas públicas que facilitem o acesso à ajuda profissional. É por acreditar nessas premissas que o padre Lício de Araújo viaja o Brasil fomentando o diálogo sobre o suicídio e sobre o luto deixado por ele. Professor do curso de pós-graduação de Intervenção na Autolesão, Prevenção e Posvenção do Suicídio, no instituto Vita Alere, o líder religiosa estuda como acolher as pessoas impactadas pelo suicídio e como prevenir que mais mortes aconteçam desta forma.

Natural de São Paulo, o padre decidiu se dedicar ao estudo da suicidologia após perder o pai desse modo aos 13 anos. Lício escreveu livros sobre o tema e foi convidado pela Livraria Paulinas de Fortaleza a dar formações e palestras sobre prevenção de suicídio para pais, educadores, religiosos e profissionais da saúde durante uma semana.

Antes da palestra do dia 27 de abril, sentado em uma sala da Faculdade Católica de Fortaleza, padre Lício falou ao O POVO sobre os mitos relacionados à religião e ao suicídio, os cuidados com pessoas que perderam parentes e amigos e a necessidade de procurar psicoterapia e atendimento médico para tratar doenças mentais.

O POVO - Você perdeu um ente querido por suicídio quando era bem jovem. Como estudar sobre isso ajudou a você a elaborar sobre o seu próprio luto.

Padre Lício - O estudo veio muito depois, porque o meu luto foi elaborado na terapia. Eu decidi fazer psicanálise. Foram 30 anos de terapia, 30 anos deitando uma vez por semana no divã com o meu psicanalista, para poder elaborar o luto. Porque o luto por suicídio é um pouquinho diferente do luto normal.
Então, foi de fato o processo terapêutico de 30 anos que me fez elaborar e ressignificar a perda do meu pai. Por isso que eu digo sempre — tanto para pessoas em comportamento suicida como para enlutados por suicídio, familiares, amigos, colegas de trabalho — se o luto complica, o ideal sempre é buscar apoio em profissionais de saúde mental, psicólogos e psiquiatras. E eu só fui estudar suicidologia quando já tinha mais de 50 anos. Eu decidi estudar, me especializar, para trabalhar especificamente com isso.

O POVO - Quando uma pessoa que tem ideação suicida vai procurar um ente querido ou amigos para falar sobre isso, ela pode encontrar pessoas que digam que falta Deus no coração dela, ou que respondam a esses sentimentos com raiva ou com desapontamento. Como você analisa essa resposta?

Lício - Isso está muito na nossa cultura. Falar de suicidio é falar de um outro assunto tabu que é a saúde mental. E as pessoas muitas vezes desqualificam as dores de alguém. Porque a dor física você vê, procura um médico, toma uma medicação. Mas as dores de alma, como elas não são vistas, e muitas vezes quem as tem tem muita dificuldade de expressá-las, então sempre vem julgamento. Ou é frescura, ou é vagabundagem. Eu costumo dizer o seguinte: tudo isso é mito.

Suicídio não é ato de covardia, suicídio não é ato de coragem, suicídio não é falta de Deus no coração. Suicídio é o ato desesperado de alguém que quer por fim à sua dor de alma. O suicida não quer matar sua vida, ele quer matar a sua dor. Por isso é importante que a gente ouça, acolha e busque encaminhar para os profissionais de saúde mental, para que essa dor possa ser olhada, cuidada e tratada.

O POVO - Você acredita que é importante falar sobre suicídio no ambito da religião? Por que?

Lício - É fundamental no âmbito da religião e eu acho que em todos os âmbitos. Porque infelizmente o suicídio ainda é um assunto tabu. Não se fala de suicídio em lugar nenhum. Não se fala de suicídio nas famílias, não se fala de suicídio nas escolas, não se fala de suicídio nas empresas, e também nas igrejas. E quando se fala, por falta de conhecimento, se fala normalmente de maneira muito distorcida, com muitos mitos. Por isso que é importante que a gente fale, que a gente tire o suicídio desta caixinha de assuntos tabus. Você só faz prevenção de qualquer coisa com informação qualificada.

Segundo a OMS [Organização Mundial da Saúde], de cada 10 suicídios, nove podem ser prevenidos. Então, por isso acho que é importante a gente falar em todos os ambientes e sobretudo no ambiente religioso. Porque tem esta coisa, por um lado, da falta de Deus no coração, e, depois que a pessoa morreu, que ela não tem salvação na eternidade. Isso complica muito o luto, que já é complicado para a família ou pros colegas de trabalho. Falar é fundamental, é importantíssimo falar pra gente conhecer o assunto, para acolher a dor de quem está sofrendo e colaborar na prevenção.

O POVO - De que modo, além de conversas sobre o assunto e de manter o diálogo vivo, a sociedade pode acolher melhor as pessoas com ideação suicida?

Lício - A sociedade pode colaborar primeiro conhecendo o assunto, buscando informação. E a sociedade pode colaborar muito na medida em que ela possa desenvolver mecanismos de acolhimento. Porque o suicídio também é uma questão de saúde pública. É preciso que, de fato, pudesse haver em todos os Caps [Centros de Apoio Psicossocial], por exemplo, o psicólogo e o psiquiatra. Eu falo isso porque viajando pelo Brasil, vejo que existem muitos municípios onde o Caps tem o psicólogo, mas não tem o psiquiatra.

E eu penso que a sociedade pode colaborar muito buscando criar os planos de prevenção. Existe já, e pouca gente conhece, o plano de prevenção ao suicidio no âmbito do Governo Federal. É importante que a sociedade civil organizada lute para que haja planos estaduais de prevenção ao suicídio. E que no âmbito municipal se construa também um plano municipal de prevenção ao suicídio, inclusive com destinação de recursos, que, de fato, a política de prevenção possa ser espalhada pelo País. É um trabalho de luta na linha de direitos do cidadão.

O POVO - Quais os cuidados que pessoas que estão sofrendo após a perda de um ente querido por suicidio precisam receber nesse momento de luto?

Lício - O luto por suicídio é muito complicado, porque a gente não tem sentido da morte. A gente não tem o porquê que a pessoa morreu. Esse porquê é importante porque dá sentido à perda. No caso do luto por suicídio, o porquê morre com a pessoa. Então, a família, os enlutados, ficam sem esse porquê. E isso potencializa as emoções do luto, porque no luto não vem só tristeza. No luto vem a raiva. Vou dar um exemplo: “Maldito médico que errou a cirurgia e matou meu pai”. Vem a culpa também. Então, no luto por suicídio, como a gente não tem esse porquê que dá sentido, inclusive pra canalizar essas emoções, sentimentos como culpa são potencializados no luto. São os famosos “e se…”, “e se eu tivesse percebido…”.

A dica é buscar duas coisas. Existem vários grupos de sobreviventes no Brasil. O CVV [Centro de Valorização da Vida], por exemplo, tem um trabalho muito bacana de grupos de sobreviventes do suicídio, são enlutados que se reunem pra partilhar as suas dores. E se de fato o luto é muito complicado, a proposta é a mesma: buscar ajuda profissional, ou serviço de saúde mental.

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