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"Nossos corpos são violentados a partir do momento em que nossas terras são negociadas"
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"Nossos corpos são violentados a partir do momento em que nossas terras são negociadas"

Líder indígena Juliana Jenipapo fala da necessidade de políticas públicas nas terras indígenas, principalmente para a proteção das mulheres e crianças das comunidades
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Juliana Alves Jenipapo é líder indígena dos Jenipapo-Kanindé e coordenadora da Associação das Mulheres Indígenas do Ceará (Amice) (Foto: Reprodução/Instagram/Juliana Jenipapo)
Foto: Reprodução/Instagram/Juliana Jenipapo Juliana Alves Jenipapo é líder indígena dos Jenipapo-Kanindé e coordenadora da Associação das Mulheres Indígenas do Ceará (Amice)

É por lutar para evitar casos de violência nas aldeias e assegurar os direitos dos povos indígenas que a coordenadora da Associação das Mulheres Indígenas do Ceará (Amice), cacika Irê Juliana Alves Jenipapo, do povo Jenipapo-Kanindé, fala ao O POVO sobre a desassistência aos povos indígenas e a violência contra mulheres e crianças. Em Roraima, denúncia feita no dia 25 de abril relatou que uma menina Yanomami de 12 anos morreu após ser estuprada por garimpeiros. Após o caso, toda a comunidade indígena desapareceu do local e só foi localizada nessa quinta-feira, 6, em outras áreas da reserva Yanomami, longe de Aracaçá.

A violência contra indígenas tem dimensões simultaneamente material e simbólica, decorrente da ausência de demarcação das terras, da insegurança frente às invasões e atividades extrativistas em territórios deles ou próximos a eles. A líder também destaca quais políticas públicas são necessárias para garantir a proteção das mulheres indígenas e quais reivindicações estão em pauta para assegurar e garantir os direitos dentro e fora das aldeias.

O POVO - Quais as políticas públicas necessárias para garantir a segurança das mulheres indígenas no Ceará?

Juliana Jenipapo - Uma delegacia destinada às mulheres indígenas, programas que ajudem essas mulheres a romper com essas violências que são sofridas, programas voltados, não para o âmbito das mulheres a nível nacional ou estadual, mas específicos para mulheres indígenas. Nós temos a Lei Maria da Penha que, em alguns casos, ela não chega a ser efetivada dentro de uma aldeia indígena. Também temos a Lei Diana Pitaguary, que criou a Semana Estadual Diana Pitaguary no Ceará. A lei já é trabalhada dentro das escolas indígenas e debate sobre violência. As mulheres que mais sofrem violência, infelizmente, são aquelas vulneráveis e que estão em situação de vulnerabilidade porque não trabalham, não chegaram a concluir o ensino médio e não têm recursos. Apenas um bolsa-família não alimenta o tanto de filhos que essa mulher tem, e ela acaba se sujeitando a ficar dentro de uma relação abusiva, por exemplo.

O POVO - As mulheres indígenas estão sujeitas a quais outros tipos de violência?

Juliana - Nós, mulheres indígenas, falamos uma frase que diz: “Antes do Brasil da pátria, existe o Brasil da mátria”. Essa mátria é a Mãe Terra, e os nossos corpos são violentados a partir do momento em que nossas terras são negociadas, são consumidas por invasores, por latifundiários e garimpeiros. Os nossos corpos são violentados a partir do momento que a floresta é derrubada, queimada e negociada. Infelizmente, existe essa violência que atinge diretamente os corpos das mulheres indígenas. Nós temos esse entendimento de que a partir do momento que a nossa terra é violentada, os nossos corpos também estão sendo violentados. A partir do momento que os nossos maridos e filhos são violentados e espancados, o nosso corpo também está sendo violentado juntamente com aquele indígena.

O POVO - Recentemente, houve denúncia de estupro e morte de uma menina da Terra Indígena Yanomami por garimpeiros, em Roraima. Qual o impacto disso na proteção das mulheres indígenas no Ceará?

Juliana - Infelizmente, isso acontece em diversas outras aldeias no Ceará. Muitas vezes, as crianças estão à mercê de visitantes que chegam ao território e olham para as indígenas, olham para a adolescente e dizem que aquela indígena é linda para manter uma relação. Os homens brancos não querem um relacionamento sério com a indígena. A partir do momento que uma indígena, como essa criança de 12 anos, é violentada, todas as outras são violentadas por viver à mercê, muitas vezes, dentro da própria casa. São vivenciadas essas situações, e, infelizmente, não é dada uma visibilidade correta, não é noticiado. Isso é apagado, é como se não existisse, mas nós sabemos muito bem que existe. Acaba sendo um ataque, não só para os Yanomami, mas também para todos os indígenas brasileiros.

O POVO - Você analisa que ainda há a presença do exotismo em relação aos corpos das mulheres indígenas? Isso pode estar relacionado aos casos de violência?

Juliana - Não. Eu não associo os casos de violência ao exotismo. Eu não posso reproduzir o preconceito que nós sofremos. Há muitos anos, os nossos corpos foram silenciados. Nossos guardiães falavam que nós vivíamos livres, sem malícia nenhuma, mas isso foi silenciado. Os homens indígenas tiveram que aprender a usar roupas, tiveram que silenciar suas línguas tradicionais e aprender a usar o português. Teve um rompimento desse silenciamento quando nós passamos novamente a nos sentir livres. Só que hoje nós nos sentimos livres com a mesma pressão de antigamente.

Eu botar meu bustiê, minha saia ou pintar meus seios de urucu e jenipapo não vai dar o direito aos outros para estarem olhando o meu corpo como um símbolo sexual. Nós precisamos ser respeitadas. É preciso que as pessoas entendam que lá atrás existia isso, mas que foi rompido e silenciado. Mostrar para sociedade brasileira que, se for necessário a gente tirar a roupa e ficar nu perante a sociedade, do jeito que a gente veio ao mundo, a gente faz isso, mas não como símbolo sexual.

O POVO - E os povos indígenas em geral, estão sujeitos a que violências sem a assistência necessária?

Juliana - O alcoolismo e as drogas têm mexido muito dentro dos territórios. A partir do momento que tem a utilização de álcool e de drogas, acaba sendo uma abertura para a violência. Isso tem chegado com muita força nos territórios indígenas. Para além dessas, o uso indevido dos territórios indígenas, a agressão do próprio desgoverno brasileiro com as populações indígenas e, especificamente, com as mulheres. Quando eu tenho um governo que não cria uma política pública voltada para mulheres, ali eu estou violentando a nível nacional às mulheres, independente da etnia.

O POVO - Qual a importância da demarcação das terras indígenas para garantir a efetividade dos direitos das comunidades?

Juliana - Não basta apenas demarcar e homologar o território se não tiver projetos de autossustentabilidade, pois, infelizmente, não vou ter como gerir a minha família e o meu povo. Mas, com certeza, esse processo demarcatório já seria um dos passos, seria o retorno menos sanguineamente de tantas mortes que já ocorreram para se ter o território demarcado. Seria apaziguar o sistema que corrompe, muitas vezes. Até mesmo alguns indígenas que, muitas vezes, acabam se deixando corromper fazendo negociações com o seu território. Além disso, essa violência com os corpos das mulheres e crianças seria rompida de uma vez por todas. Hoje, a gente já tem um cuidado com o nosso território, mas com a demarcação, nós saberíamos que não iria ter olhares de terceiros querendo o tempo todo negociar para poder ter parte dos territórios dos povos indígenas.

O POVO - Atualmente, quais as principais reivindicações para garantir assistência aos povos indígenas?

Juliana - Nossas pautas, além da demarcação das terras, estão ligadas à educação, onde se tenha concursos para professores indígenas. Até hoje, esses professores estão sem uma criação de categoria para professores indígenas, sem concursos para esses profissionais. Também é necessário criar uma linha para que o ensino médio nas escolas indígenas seja efetivado. Na questão da saúde, também se faz necessário concurso para os profissionais da saúde que lidam com trabalho nas terras indígenas, além de medicamentos que faltam. É preciso uma linha de projetos voltados para a medicina tradicional também.

O POVO - Como é a atuação das lideranças indígenas?

Juliana - São lideranças e militâncias que estão na luta diariamente. Para além da luta, nós sabemos que precisamos ocupar outros espaços, como a universidade. Buscamos graduações e mestrados. Temos líderes que foram para a linha do Direito para se somarem a essa luta, que a gente possa ter o conhecimento. Porque, para além do conhecimento da minha luta do que os meus antepassados reivindicaram, eu preciso hoje ter o conhecimento da letra e da caneta para bater com muito mais pontuação e conhecimento do que outros. Nós vamos à Brasília para acompanhar alguns projetos de lei (PLs), como o Marco Temporal, que é o pacote da destruição das terras indígenas. As lideranças lutam para conseguir transportes, alimentação, os espaços dos indígenas e dizer em Brasília a necessidade dos seus povos.

Lei

A Lei Diana Pitaguary Nº 17.041, 10 de outubro de 2019, criou a Semana Estadual Diana Pitaguary, que tem o objetivo de debater com estudantes questões sobre violência contra a mulher, feminicídio e importunação sexual no Ceará.

Marco Temporal

Marco temporal é uma ação no Supremo Tribunal Federal (STF) que defende que povos indígenas só podem reivindicar terras ocupadas em 5 de outubro de 1988. Com a aprovação do Marco, as comunidades temem perder direito a áreas em processo de demarcação.

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