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"Precisamos entender o risco autoritário"
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"Precisamos entender o risco autoritário"

Pesquisador Marcos Nobre reflete em novo livro sobre as ofensivas autoritárias do governo Bolsonaro
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Brasil, SP, São Paulo. 04/08/2017. Entrevista com o cientista social Marcos Nobre, professor de Filosofia Política na Universidade de Campinas (Unicamp) e presidente do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), realizada na sede do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), na zona sul da capital paulista. - Crédito:RAFAEL ARBEX/ESTADÃO CONTEÚDO/AE/Código imagem:238920 (Foto: RAFAEL ARBEX/ESTADÃO CONTEÚDO)
Foto: RAFAEL ARBEX/ESTADÃO CONTEÚDO Brasil, SP, São Paulo. 04/08/2017. Entrevista com o cientista social Marcos Nobre, professor de Filosofia Política na Universidade de Campinas (Unicamp) e presidente do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), realizada na sede do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), na zona sul da capital paulista. - Crédito:RAFAEL ARBEX/ESTADÃO CONTEÚDO/AE/Código imagem:238920

O filósofo Marcos Nobre recupera o fio de 2013 para entender as turbulências que o país atravessa agora. Para ele, é necessário compreender as razões pelas quais o Brasil chegou até aqui se quisermos barrar os projetos autoritários representados pelo bolsonarismo.

“Nós precisamos entender essas causas se queremos isolar a extrema-direita e o risco autoritário no país”, adverte Nobre, que acaba de lançar “Limites da democracia” (Todavia), livro no qual aprofunda investigações começadas ainda em 2013.

O POVO – O livro “Limites da democracia” é um desdobramento direto de seu trabalho anterior, “Imobilismo em movimento”, aprofundando aquelas reflexões. Como o senhor conecta esses episódios, a eleição de Bolsonaro e os eventos de junho de 2013?

Marcos Nobre – De fato é uma continuação. “Imobilismo” vai da abertura democrática até o governo Dilma, e “Limites da democracia” é de junho de 2013 até o governo Bolsonaro. É uma sequência mesmo, foi pensado dessa maneira, mas os livros são muito diferentes. No caso do “Imobilismo”, é uma reconstrução histórica muito mais ampla, detalhada, factual. Em “Limites”, a reconstrução é mais temática. Especificamente em relação a 2013 e 2018, tem uma tese muito comum no debate público de que o germe para a vitória de Bolsonaro em 2018 estaria em junho 2013. Uma das coisas do livro é tentar mostrar que isso simplesmente não corresponde ao que efetivamente aconteceu. Não só porque junho não foi isso, mas porque esse tipo de ligação direta, de curto-circuito, nos impede de entender verdadeiramente as causas da ascensão do Bolsonaro. E nós precisamos entender essas causas se queremos isolar a extrema-direita e o risco autoritário no país. Precisamos de ferramentas de interpretação, de compreensão, para poder ter uma ação correspondente a esse risco atual que nós corremos. Tento mostrar que 2013 tem que ser entendido num contexto global de revoltas, no ciclo de 2011/2013. Houve lugares em que o resultado foi o fortalecimento da esquerda e a criação de partidos. Teve lugares em que foi a direita a vitoriosa. E lugares onde houve regressão autoritária. Os resultados no mundo inteiro são muito diferentes dependendo de qual partido estava no poder e das características de cada movimento. No Brasil, como o sistema político não se abriu para as novidades de junho de 2013, como não se autorreformou – pelo contrário, ele se blindou da sociedade e disse que iria esperar passar e depois continuar como se nada tivesse acontecido –, o resultado foi o desastre da crise permanente que a gente tem a partir de 2015. Pra ficar claro, tem um caminho que vai de 2013 a 2014 e de 2014 para 2015, e depois um longo período de instabilidade que vai de 2015 até 2018. São momentos diferentes, e isso é importante pra gente entender a situação em que a gente está hoje. Não sendo capaz de receber essa energia que saiu às ruas, o sistema político criou, na verdade, uma força paralela a ele, que foi uma oposição extrainstitucional, que se utilizou de elementos institucionais, em especial da Lava Jato, para enquadrar e emparedar o sistema político. Esse momento de 2015 a 2018 foi o momento em que o sistema político perdeu o controle da política. Não é que o outro lado tenha conseguido o controle da política, mas conseguiu impedir que o sistema continuasse dando as cartas. Por isso tivemos uma instabilidade tão grande, porque não tinha nenhum polo que conseguisse se estabelecer para controlar a política. Foi nesse momento, entre 2015 e 2018, que foi construída a candidatura de Bolsonaro. Ele surfou uma onda que não foi ele que criou. Surfou porque ele era o único que tinha a prancha, tinha uma candidatura antissistema muito bem organizada, com consistência, produzida desde 2012. Tinha seis anos de construção.

OP – Quase quatro anos depois de eleito, a retórica de Bolsonaro continua a ser essa do antissistema. O que justifica a manutenção daquele discurso de 2018 na disputa de 2022?

NobreBolsonaro não foi só um candidato antissistema, ele também é um presidente antissistema. Mas como é possível que o sujeito que dirige o sistema seja antissistema? Essa é que é a habilidade política do Bolsonaro. Pode falar: é burro, incompetente, idiota. Pode até achar isso, mas politicamente é muito hábil para os objetivos dele, que fique claro isso. Não sei se já viu um presidente que chame uma CPI contra uma estatal que ele dirige. É muito específico. É alguém que convence uma base importante do eleitorado de que ele está lutando contra o sistema e que nunca vai se render ao sistema. É um tipo de presidência muito característica. Ele está dizendo que não adianta ganhar só a eleição, porque ganhar não significa acabar com o sistema, o sistema continua funcionando. Por isso ele pode se apresentar na eleição de 2022 como antissistema, porque cultivou essa base. Não é uma maioria, mas é muito significativa, e conseguiu convencer essa base de que ele é o único representante antissistema que existe no Brasil. Isso é uma capacidade de organização e mobilização muito importante e nova no país. Nunca a extrema-direita teve um grau de organização como esse antes. Nós temos uma situação em que a direita brasileira está sendo hegemonizada pela extrema-direita. Ela não consegue autonomia e uma figura própria, e isso é grave.

OP – Qual é o espaço que o “pemedebismo” tem no governo Bolsonaro? Esse pacto foi rompido, o governo inventou uma nova dinâmica?

Nobre – Existe um conservadorismo brasileiro, presente na história do país, e existe um conservadorismo especificamente democrático, uma maneira democrática de gerenciar esse conservadorismo, que é o “pemedebismo”. Por que é importante dizer conservadorismo democrático? Porque significa que o pemedebismo, por pior que seja como maneira de funcionar, é democrático. E o que estamos vendo agora é a forma-limite do pemedebismo, porque, como o projeto de Bolsonaro é um projeto autoritário, a democracia pra ele é só um meio pra atingir um fim que é o fim da democracia. É uma forma-limite porque, se desaparece a democracia, desaparece o pemedebismo também, e é com isso que estamos lidando agora. O que se costuma chamar de centrão é a base normalmente do pemedebismo, mas o centrão tem muitas configurações, tem muitas caras. Nasceu em 1987, na constituinte, e tinha uma cara. No governo FHC ele tem outra, no governo Temer tem outra. O centrão tem muitas caras, e a cara que ele tem hoje é o que chamo de centrão “carcará”: pega, mata e come. É o centrão que está ali para tirar o que for para tirar, mesmo que o risco seja a implantação de um regime autoritário. É um tipo de centrão que topa uma aliança com a ameaça autoritária.

OP – O pemedebismo sempre foi um fiel da balança na estabilidade dos governos, mas o que se viu nesses três anos e meio foi tudo, menos estabilidade. Esse tipo de relação faz parte do modus operandi do bolsonarismo? Isso tem relação com o que o senhor chama de “sociabilidade digital”?

Nobre – Quando a gente pensa na relação do governo Bolsonaro com o pemedebismo, tem dois momentos diferentes. Tem o governo Bolsonaro antes e depois da chegada da pandemia no Brasil. Num primeiro momento, Bolsonaro era antissistema também no confronto com o Congresso, com o centrão. Nesse momento, ele tinha uma aliança com as forças armadas e militares no governo, e as forças apoiam ou apoiavam o governo porque ele era contra o centrão. Quando chega a pandemia, há o risco concreto de Bolsonaro sofrer impeachment. Há o risco de as denúncias contra ele e a família serem efetivamente investigadas. Ele precisa fazer um governo de guerra, e o que é um governo de guerra? Ele precisa fazer uma aliança com quem tem o poder de acolher e processar o pedido de impeachment, que é principalmente a Câmara. E, além disso, precisa controlar a PF, os órgãos de controle, como PGR, e assim por diante. E não podia ter o ministro Sergio Moro no Ministério da Justiça, porque era um risco de ser traído e Moro se colocar como candidato caso ele perdesse o mandato. Precisava expulsar Moro, expulsar Mandetta porque estava fazendo uma gestão da pandemia que era sistêmica, e Bolsonaro precisa ser antissistema. E precisava ainda fazer um acordo com o centrão. Não com todo centrão, porque o centrão naquela época incluía Rodrigo Maia, o MDB, vários outros partidos, e ele resolve fazer uma aliança com principalmente dois partidos. Com PP, que tem esse nome jocoso de Progressistas, e um outro, que é o Partido Liberal. Faz um acordo com esses dois pilares e vai convencendo a base dele. Bolsonaro não tem formalmente um partido. Ele está num partido, que é o PL, mas não faz parte dele, está lá parasitando. Ele não precisa de um partido porque tem o partido dele, que é informal e que eu chamo de partido digital bolsonarista. É uma máquina de desinformação e propaganda, mas também uma máquina de mobilização e engajamento. É importante não esquecer isso. Ele tinha que convencer o partido digital e sua base social antissistema de que era necessário fazer um acordo com a expressão máxima do sistema, que é o centrão. Foi um processo muito difícil, uma operação política complicada, ele passou praticamente o ano inteiro de 2020 fazendo isso, enquanto ia construindo a candidatura de Arthur Lira para a presidência da Câmara. E ele foi bem-sucedido nisso, em convencer essa base que vota nele de que precisava fazer esse acordo com o sistema para sobreviver e continuar sendo antissistema. Isso demonstra uma habilidade política e organizacional muito grande. Alguém que faz uma operação dessas significa que tem capacidade de convencimento. Nesse acordo, o que ele fez foi dizer: eu quero de vocês que não acolham nenhum pedido de impeachment nem atrapalhem o processo de aparelhamento dos órgãos de estado, principalmente de controle e segurança, e, em troca, eu vou dar para vocês uma fatia muito relevante do orçamento. No fundo, disse que precisava chegar vivo até a eleição de 2022. Bolsonaro só governa para a sua base e veta o que é contra essa base. O resto, ele entrega para o Congresso. E esse entregar significa basicamente governar, porque se ele cuida só da sua base, ele não governa. O Congresso tem hoje 20% do orçamento discricionário do governo. Esse foi o acordo. É uma vantagem eleitoral enorme. É uma situação que favorece os dois lados e prejudica o país.

OP – O presidente deve ter como companheiro de chapa um militar (Braga Netto), contrariando expectativa de que ele escolheria um nome do centrão. O natural não deveria ser um nome do centrão? Faz sentido?

Nobre – Faz todo sentido. Por duas razões. Uma das coisas que ele mais teme é o impeachment. Se ele coloca uma ministra como Tereza Cristina na vice e ele vence a eleição, ele acha que pode ser traído. Esse é efeito da parlamentada de 2016 e da tragédia do impeachment de Dilma Rousseff. Além disso, tem outro fator que também é importante. Sendo um presidente antissistema, tem que mostrar pra sua base que o acordo com o centrão é simplesmente de sobrevivência, que não existe uma concordância dele, que ele não se rendeu ao sistema. Colocar o Braga Netto na vice é uma sinalização a essa base, especialmente uma sinalização para as forças armadas, que, mais do que ninguém, são anti-centrão. Claro que convivem, se acostumaram com o centrão, mas, em princípio, é uma convivência conflituosa.

Currículo

Marcos Nobre é pesquisador do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap) e professor do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp)

Livro

“Limites da democracia”, sua obra mais recente, é um aprofundamento de “Imobilismo em movimento”. No novo livro, Nobre investiga o período que vai de 2013 até os anos do governo Bolsonaro.

 

Estudos

Filho de cearense, Nobre é filósofo por formação, mas se dedica à análise da política e do fenômeno que ele chama de "pemedebismo", categoria com a qual analisa as relações entre Executivo e Legislativo no Brasil

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