O arquiteto e urbanista José Liberal de Castro (1926 - 2022) é considerado o mestre de toda uma geração de profissionais da Arquitetura. Ao conversar com alunos e colegas do cearense, as falas inevitavelmente mencionam a sua maestria na pesquisa, ensino e atuação profissional. A reputação é fundada em uma vida inteira dedicada à área, numa relação que se inicia quando o filho de José e Matilde Martins de Castro desembarcou no Rio de Janeiro, no ano de 1944, a fim de expandir os horizontes profissionais. Desde este primeiro momento até a sua partida, noticiada no dia 9 de setembro, Liberal de Castro desenhou um percurso pioneiro.
"Ele é conhecido como mestre por todos nós. O Liberal era um mentor da vida comunitária, alegre e rigoroso também. Ele trouxe para o Ceará muita coisa importante, é uma pessoa de muita capacidade no trabalho e um dos pesquisadores mais respeitáveis do Estado. É referência nacional nessa área de ensino da arquitetura e, para nós, inesquecível", afirma o arquiteto e urbanista Delberg Ponce de Leon, amigo de José por mais de 50 anos. Ainda na conhecida "Cidade Maravilhosa", Liberal ingressou na Faculdade Nacional de Arquitetura e, em paralelo, conciliou as atividades com ofício técnico na companhia Standard Oil Company. A princípio, considerava que a capital cearense não tinha tantas perspectivas profissionais, mas decidiu voltar à terra natal ao ser convidado para lecionar na Faculdade de Engenharia da Universidade Federal do Ceará (UFC).
Ele também integrou o Departamento de Obras e Projetos da Universidade, onde contribuiu no planejamento das primeiras intervenções da instituição, como o novo Campus do Pici. Em 1964, Liberal recebeu o convite para desenvolver a Escola de Arquitetura da UFC ao lado dos professores Armando Farias, Ivan Britto e Neudson Braga - grande parceiro nos projetos arquitetônicos. "As cinco primeiras turmas deveriam ser, mais ou menos, umas 80 pessoas, era uma convivência quase familiar. Até recentemente o Liberal não tinha se adaptado com o nome Departamento de Arquitetura de Urbanismo e Design, para ele era Escola de Arquitetura. Conseguiram montar um curso com uma excelente biblioteca, com um acervo que muitas faculdades grandes não tinham", pontua Delberg.
Enquanto esteve presente nas salas de aulas, o docente contribuiu para a formação de profissionais por meio de conteúdos que transcorreram entre a história da arquitetura e os elementos do modernismo arquitetônico. Ponce de Leon, todavia, ressalta que o "grande papel de Liberal para a Cidade foi o trabalho em defesa ao patrimônio". O cearense obteve destaque na historiografia, sendo pioneiro no processo de documentação da arquitetura e urbanismo cearense. De acordo com o arquiteto Romeu Duarte no texto "O Pioneiro do Patrimônio no Ceará", disponibilizado na edição 2017 - 2018 do Anuário do Ceará, Liberal "passa a contar com apoio institucional e humano" para realizar pesquisas relacionadas à temática a partir do pleno funcionamento da Escola de Arquitetura da UFC, em 1965. "Como membro do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), ele conseguiu a justificativa de análise de locais como a Casa José de Alencar e o Theatro José de Alencar", cita Delberg.
O professor também realizou levantamentos da arquitetura colonial do Estado, documentos que integram o acervo do atual Departamento de Arquitetura e Urbanismo da UFC, em cidades como Icó, Aracati e Sobral, além de Fortaleza. Como arquiteto, foi responsável por projetos "icônicos" como a Pró-Reitoria de Extensão da UFC e o Estádio Castelão. Ainda na seara arquitetônica, elaborou variados desenhos de edifícios, desde prédios comerciais até instalações destinadas à área de saúde. Vale destacar as ocupações de Liberal de Castro como sócio-fundador da Delegação do Instituto dos Arquitetos do Brasil (IAB-CE), onde atuou como Presidente entre 1966 e 1967. Ele também foi membro do Conselho de Cultura do Estado do Ceará e do Conselho Universitário da Universidade Federal do Ceará, além das contribuições enquanto membro do Instituto do Ceará.
O arquiteto se manteve ativo até os 96 anos e, mesmo após a aposentadoria, continuava com a presença contínua nos encontros acadêmicos. Delberg rememora a última participação do amigo em um evento público, logo na data de lançamento do livro da professora e arquiteta Márcia Cavalcante, em dezembro de 2021. A pandemia causada pela Covid-19 distanciou Ponce de Leon da relação próxima que costumava ter com o colega de profissão, mas ambos mantinham contato nos últimos dois anos por longas conversas por telefone. "Nossa forma de comunicação eram telefonemas de 40, 50, 60 minutos. Nesse período inicial de isolamento, as saídas eram muito restritas e ele sentia dificuldade com esse tempo isolado. Ele gostava muito de conversar, passeava com uma grandeza por todos os assuntos que você abordasse", lembra. Desde a perda dolorosa do amigo de longas datas na última sexta-feira, 9, Delberg lembra constantemente da trajetória de Liberal.
O urbanista menciona, com carinho, a ligação íntima do "mestre" com a Escola de Arquitetura, uma das suas principais criações. Reforça, inclusive, que esse espaço era "a casa dele". A visita à biblioteca, por exemplo, era um passeio cotidiano na rotina de José. Mesmo com os avanços tecnológicos, Liberal se comunicava apenas por um telefone fixo residencial. Apreciava futebol e, vez ou outra enquanto era mais jovem, tomava um uísque nos encontros sociais. Era uma pessoa que gostava, sobretudo, de estar em conjunto, com um temperamento tido como singular pelos companheiros. "De início era uma pessoa sisuda, rigorosa, mas depois de um tempo se demonstrava um grande professor e a gente percebia o quanto ele era dedicado", comenta o arquiteto e urbanista Totonho Laprovitera. Apesar dos extensos anos de atuação profissional, Totonho relembra como o "mestre" conservava o "vigor de menino" em um desejo constante de continuar explorando cada pormenor. "Era muito bom conversar com ele, sempre tinha alguma coisa a aprender. A gente aprendia com ele até quando ele calava". Professor emérito da UFC, Liberal de Castro deixa um sentimento de "orfandade" em seus alunos, mas mantém os princípios eternizados. "Ele sempre conservou a juventude na ânsia do conhecimento compartilhado, isso é uma característica dos grandes. Ensinou com o pensamento, com a análise. O Liberal ensinou a utilizar a arquitetura como forma de promover o bem-estar das pessoas e buscá-lo, sempre procurando combater as desigualdades, com desenhos que beneficiem a todos numa perspectiva democrática de igualdade. Nisso, garanto que eu e meus contemporâneos fomos abençoados", complementa Totonho.
Para sintetizar a influência de Liberal, o urbanista frisa as mudanças em Fortaleza após as contribuições do "mestre" na Escola de Arquitetura. "A Escola está em funcionamento desde 1965. Desde a década de 1970, mudou o desenho e a linguagem da nossa arquitetura, a formação e atuação de novos profissionais, que estão ocupando espaços na gestão pública. A Cidade teve outra leitura, começou a ter personalidade própria. Hoje em dia, tem uma produção arquitetônica muito boa, com um conteúdo cultural muito grande e um estímulo ao estudo, à pesquisa e ao pensar. O professor Liberal é de uma importância grande, uma memória extraordinária e profundo conhecedor".
Neudson Braga
O arquiteto e urbanista Neudson Braga conheceu Liberal de Castro antes mesmo de começar sua carreira na profissão, ainda no Rio de Janeiro. Depois de chegar em Fortaleza, o profissional firmou uma parceria de anos com o cearense. Juntos, eles integraram a primeira equipe da Escola de Arquitetura e projetaram outros tantos edifícios importantes para o Ceará. Em depoimento ao O POVO, Neudson relembra os anos ao lado do amigo e corrobora a relevância de Liberal.
Encontro
“Eu conheci o Liberal antes de ser arquiteto, estudei na mesma universidade que ele no Rio de Janeiro. Depois eu recebi um dos primeiros trabalhos importantes que ele fez aqui, a ampliação do Colégio Cearense, e fiquei muito empolgado. Quando cheguei em Fortaleza, recebi um convite do reitor para assumir um cargo no Departamento de Obras da UFC e quem me recepcionou foi ele, no comecinho de 1960, talvez fevereiro. Como eu vinha do Rio, da mesma faculdade dele, a gente começou a conversar e a ter mais afinidade profissional, depois começamos a nos entender como pessoas. O jeito de agir, a inteligência e a cultura me faziam gostar de conversar com ele. Começamos também a trabalhar juntos num projeto muito importante, o Plano de Desenvolvimento da Universidade Estadual do Ceará em 1966, foi a primeira vez que surgiu a ideia dos campus. Nós também fizemos o Plano Diretor do Campus do Itaperi e as primeiras instalações da UECE”.
Parceria
“O Liberal tinha uma cultura extraordinária. Ele projetava, mas ao desenvolver o projeto ele tinha um certo receio. Então ele me entregava e eu finalizava os projetos. Ele tinha um escritório, mas trabalhava mais comigo do que no escritório dele. É uma parceria profissional que começou nas pranchetas e foi até o fim da vida. O nosso último projeto foi o Hospital Veterinário. A nossa conduta, até pessoal, é completamente diferente. Eu sou um homem moderador e ele não, a gente tinha que trabalhar juntos até para fazer essas compensações. Foi uma amizade que perdurou durante todo esse tempo sem nenhuma briga, nenhum estágio de discordância. Até mesmo no futebol, ele é Fortaleza, eu sou Ceará, essas coisas eram bem contrastantes. Mas, no final, era uma unidade. A gente tinha uma identidade própria”.
Escola
“A Escola de Arquitetura foi criada de uma forma diferente. De repente chega uma ordem para o reitor dizendo que a Escola tinha sido criada no decreto do Castelo Branco e seria incorporada na Universidade. O reitor convidou eu, Liberal, Armando Farias e Ivan Britto para assumir a Escola. Foi a primeira Escola de Arquitetura, em junho de 1964, e em 1965 já deveria começar. a funcionar. Eu e o Liberal saímos viajando pelo Brasil, conhecendo pessoas, discutindo programação. A gente saía para comprar coisas para montar a biblioteca da Escola, que não tinha um livro, dentro de seis meses virou uma biblioteca modelar, um acervo incrível. Foi tudo feito nesse começo. Nos móveis, nós fomos às fábricas. Tudo foi comprado por nós dois, saímos como caixeiros viajantes. Nós fomos muito convidados para eventos, antes de formar a primeira turma, nós ganhamos um prêmio internacional na Bienal de São Paulo pela Escola".
Amizade
“É uma amizade que eu considero preciosíssima. Minha mulher adoeceu e faz hemodiálise há dez anos. Ele telefonava diariamente, às 19 horas, para me animar e saber dela. É algo emocionante. Quando eu via que ele estava se aproximando do fim, me dava um desalento saber que aquela cabeça, aquela memória extraordinária, a cultura.... Ele não era um homem de arquitetura, era um homem da cultura geral. Foi um homem que abriu a história do Ceará de uma maneira diferente, ele analisava como arquiteto, do geral para o particular. Em todos os momentos da vida dele eu estive com ele e estou com ele através de orações, dos pensamentos. Sempre pensando nos desafios que enfrentamos juntos. A saudade é profunda, o carinho que as pessoas têm por ele não é em vão”.