Mostrar que é capaz de ser líder sendo camponesa, mulher, preta e de origem pobre é o desafio diário de Damiana Bruno. Líder do Movimento Sem Terra (MST) e estudante universitária, ela atua no acampamento Zé Maria do Tomé, em Limoeiro do Norte, a 202 km de Fortaleza. Damiana foi uma das homenageadas do projeto Todas Somos Uma, da Defensoria Pública Geral do Ceará (DPCE), que enaltece a trajetórias de 13 mulheres em diversas áreas.
Ao O POVO, ela falou sobre os retrocessos e violências vividas nos últimos anos pelo MST, com o aumento do narcotráfico, e destacou a legitimidade da ocupação de terras. Os assentamentos ocupam terras que não cumprem a sua função social, que é produzir, ela explica.
Estudante de Pedagogia da Universidade Estadual do Ceará (Uece), ela defende que, além da regularização, as comunidades assentadas precisam de assistência social e técnica para que tenham acesso aos direitos e possam se desenvolver.
O POVO - Como você avalia o impacto do Governo Bolsonaro na questão da terra e da moradia no Brasil? Em que medida houve aumento da violência contra o movimento nos últimos anos?
Damiana Bruno - Falar de um desgoverno como o tal é muito emblemático para a gente. Nós vivenciamos o pior descaso da humanidade dentro de quatro anos. A destruição de um país dentro de quatro anos, se a gente passar 100 anos, não reconstrói. E o retrocesso dentro das áreas rurais, sobretudo zonas rurais, traz um reflexo muito grande do preconceito, a proximidade das facções dentro da zona rural. Acho que essa saída um pouco mais do centro urbano, chegando o narcotráfico até as zonas rurais a partir dos seus interiores. Na nossa visão, isso foi muito promovido pelo desgoverno Bolsonaro quando ele promoveu o aumento do número de armas dentro das cidades, das casas, quando incitou a violência com os povos. Os povos indígenas, os negros, os camponeses, assim como insultou o MST. É uma decrescente muito grande.
Naquele período, a gente tinha um crescimento de famílias que viviam em uma qualidade de vida e essa qualidade caiu. O que ele fez com as populações foi de uma extrema violência quando matou, negou a vida, negou a comida para essas pessoas. A gente tá, por exemplo, no Vale do Jaguaribe, com a maior produção de frutas sendo exportada em Limoeiro do Norte e a gente tem uma população de 33% de pessoas que passam fome. E é fome de não ter o que comer de forma alguma, de ter pessoas na rua, de ter pessoas que perderam seu espaço para os megaprojetos. Megaprojetos que desestruturam famílias, desestabilizam localidades e que essas famílias permaneceram na rua sem ter o que comer.
OP - O que são esses megaprojetos?
Damiana - A gente pode falar, por exemplo, dos megaprojetos de energia solar que não nos cabem. Não é que nós somos contra a energia solar, muito pelo contrário. O Estado deveria pensar em um projeto que tivesse placa solar para as casas. Mas (uma coisa é) ter uma placa solar para as famílias terem energia mais barata e outra coisa é ter um projeto de energia solar como temos no Vale do Jaguaribe, que desmatou inúmeros hectares de terra, tirou os animais, promoveu destruição para fazer um projeto privado, que não é nosso. A gente precisa falar, inclusive, do megaprojeto que está se chegando para o Ceará, que é a mineração de calcário, urânio e fosfato. Quando a gente fala de uma barragem, por exemplo, a gente tá vendo nossas vidas serem desfeitas. Quando os canais de irrigação chegam, a gente perde território, não só a terra. Para a gente não é só o pedaço de chão, mas é um território, com toda a sua história. Quando chegam esses megaprojetos, a gente acaba perdendo. Porque você perde a ligação com o rio, com a comunidade. Porque as comunidades estão fragilizadas, não têm renda e aí a gente tem uma crescente muito grande de prostituição, exploração sexual, sobretudo infantil. A gente vê a chegada do próprio narcotráfico nas comunidades. Então, isso ele desencadeou no seu governo.
OP - Tudo isso não será resolvido da noite para o dia. Quais devem ser as medidas prioritárias para mitigar essa situação e proteger as comunidades?
Damiana - Não nos enganemos. A gente vai viver o governo mais difícil de se trabalhar. Vai ter que ser um governo muito conciliador, no sentido de que tem que agregar e segurar para não perder. A gente tem que ter muito medo de um impeachment também. Uma coisa foi a gente se livrar do Bolsonaro dentro do Palácio, outra coisa é a gente vivenciar o bolsonarismo em todos os espaços em que estamos. Então, o bolsonarismo se instalou de uma forma que tem sido muito perversa e muito difícil. A pensar primeiro o que a gente deveria fazer, são muitas ações. Eu acredito muito na formação. Acredito que quando a educação não é libertadora, como dizia Paulo Freire, o sonho do oprimido é se tornar opressor. E essa opressão precisa ser desinstalada. Porque os nossos povos começaram a acreditar que aquilo não é seu de direito, que quando o MST ocupa uma terra, está fazendo algo ilegal. E não é. A gente está falando de terras que estão sem produção, terras que não cumprem sua função social. Inclusive, na lei diz que a terra precisa cumprir uma função social, que é produzir. Um primeiro momento é: como regularizar os assentamentos e acampamentos desse país? E não é regularizar como no período FHC (Fernando Henrique Cardoso), vamos inaugurar assentamentos. Não é isso. A gente tem que dar qualidade de vida dentro dessas comunidades, assim como dentro das comunas, que são as áreas urbanas. De que forma? Dando assistência técnica, assistência social a esses povos. Porque quando a gente pega a terra e diz “tu tem um hectare de terra, faz o que quiser”, tu não vai saber como plantar o milho e o feijão. E tu vai vender essa terra muito barata. Inclusive, como usar a água, que é fundamental, que é ter a juventude e a criançada em um espaço que lhe caiba.
A gente está falando da juventude que sai da zona rural para estudar em sala de aula tradicional, onde não ensinam como produzir. Se a gente pegar esse período de pandemia, nós tivemos o maior exemplo de que isso é viável. Quando o MST foi a instituição que mais distribuiu alimento na pandemia para hospitais, pastoral carcerária, pastoral de crianças, casa de idosos, todos os espaços. Mas a gente precisa chegar em espaços em que a gente não tem acesso. O que a gente precisa a partir de agora é que esse acesso chegue. A gente não pode ter famílias vivendo a vida toda em um acampamento sem ter um comprovante de residência, porque nem um bolsa família eles vão ter acesso. Dentro de um acampamento é como se a família não existisse para o Estado.
O que a gente precisa é dizer para o Estado que essas famílias existem, estão aqui e promovem o bem estar do Estado e do País. A primeira coisa é regularizar fundiariamente a aquisição de terra, a distribuição de terra de forma criteriosa, que passa por todo um processo acompanhado pelas comunidades e pelos movimentos sociais. E, a partir daí, dar estrutura de vida, acompanhamento do que fazer.
OP - Como é essa questão do narcotráfico, que você citou, estar indo mais para as áreas rurais e para os assentamentos? Em que medida isso tem alterado o cotidiano de vocês?
Damiana - A gente está falando de mães e as mulheres são as mais afetadas de todo tipo de violência. E não é por ser sexo frágil não, mas é porque as mulheres acabam estando mais vulneráveis a todo tipo de de violência. Quando a gente fala com relação ao narcotráfico se aproximar, a gente tá tendo uma crescente muito grande de assassinato contra a juventude. E a juventude acaba usando drogas, seja o que for. Isso não é culpa da juventude e não é culpa da mãe que não soube criar. A gente tá dentro do quadro de um Estado que nos nega o acesso à educação, à saúde. Porque chegar na universidade não é fácil. Se a criança fizer algo que, na visão deles, é grave, é expulsa da sala de aula. Para onde vai essa juventude? Para a rua. E quem acolhe? São exatamente esses que a gente não queria que acolhessem. Essas pessoas não estão envolvidas. Essa juventude foi desenvolvida, foi tirada de um meio social e jogada para uma exclusão social quando o narcotráfico se apropria dessas vidas. Nós falamos do narcotráfico porque estamos no Vale do Jaguaribe, na cidade mais violenta do Brasil [São José do Jaguaribe], onde se mata três, quatro pessoas por dia. Essa população tem cor e tem idade quando o narcotráfico se aproxima.
O POVO - Como é a sua experiência em ser uma liderança no movimento enquanto mulher? Quais os maiores desafios você enfrenta?
Damiana - Primeiro, o machismo. O maior impasse que a gente encontra é o racismo e o machismo. Sobretudo, porque as populações são pretas. Elas têm cor. A gente escuta muito que não temos racismo. Eu lembro muito o Victor Gomes, que é um escritor que fala exatamente sobre o preconceito. Ele diz que o primeiro preconceito é não reconhecer que é preconceituoso. A gente precisa reconhecer esse machismo e esse racismo. Acho que o primeiro recorte tem que ser de raça porque a gente sabe quais são as populações que mais sofrem. Qual a maior população carcerária, que está mais vulnerável às balas perdidas? São nossos corpos negros. A gente fala muito sobre isso, como é difícil ser mulher no Brasil, que mata 22 mulheres por mês. As que são registradas.
Dentro dos movimentos sociais não é diferente, é um desafio para nós. Como se todos os dias tivéssemos que nos colocar no sentido de dizer que somos capazes. Somos capazes mesmo sendo mulheres, mesmo sendo população preta, mesmo sendo população pobre. Dentro desse desafio, a gente pega um desgoverno em que todas essas agressões e violência tiveram uma grande crescente. Temos que conquistar o espaço de fala. As universidades não foram sonhadas para nós pretas. A gente estar em um espaço de liderança da comunidade não foi sonhado por nós. Mas a gente precisa chegar, como diz uma amiga, “de voadora”. Porque esse é nosso espaço e dizer que não vamos nos calar. Esse silêncio em que nos seguraram a vida toda, algumas de nós têm que quebrar essas amarrações. Mas não tem sido fácil porque a gente sofre perseguição, sofre ameaça. Porque homens nos odeiam, não querem que a gente ande com as mulheres porque vamos “fazer a cabeça” das outras mulheres. Dentro desse desafio a gente vai criando caminhos. Os caminhos de trazer novas mulheres.
A gente não quer protagonizar, ser construtora de uma história em que sejamos nós as únicas que conseguiram quebrar isso. A gente quer trazer mais mulheres. A gente tem muitas famílias chefiadas por mulheres que são mães solo, que precisam dar conta de tudo. E nos fazem, muitas vezes, ter medo. Não é só um desafio de dizer se eu sou ou não capaz. É um medo de amanhã não estar porque querem nos calar.