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"Quem faz o Carnaval de uma cidade não é a Prefeitura, são os artistas"
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"Quem faz o Carnaval de uma cidade não é a Prefeitura, são os artistas"

A artista Mulher Barbada fala sobre o primeiro momento com programação de Carnaval desde o início da pandemia de covid-19 e sobre planos de carreira
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Artista Mulher Barbada se apresenta no Bloco Mambembe em 2023 (Foto: MICAELA MENEZES/DIVULGAÇÃO)
Foto: MICAELA MENEZES/DIVULGAÇÃO Artista Mulher Barbada se apresenta no Bloco Mambembe em 2023

Importante artista do cenário cultural cearense, a Drag Queen, cantora e atriz, Mulher Barbada avalia cenário de retorno das programações de Carnaval na cidade de Fortaleza. Sua carreira atravessa mais de seis anos de shows nessa festa e a atuação no Coletivo As Travestidas, que chegou oficialmente ao fim das atividades em janeiro de 2023.

Rodrigo Ferrera, que dá vida à Queen Mulher Barbada, foi a protagonista de uma discussão marcante nas redes sociais sobre a discrepância de espaço dado em festivais cearenses aos artistas da região. O fato que desencadeou o tema foi um mal tratamento no show em que a artista dividiu palco com Pabllo Vittar, em outubro de 2022.

Em entrevista ao O POVO, Rodrigo deu sua opinião sobre a oportunidade dada aos “artistas locais” e os problemas enfrentados por eles para apresentações no Carnaval de Fortaleza em 2023.

O POVO - O ano de 2023 está sendo marcado como o primeiro com programação de Carnaval desde o início da pandemia de covid-19. Para você, qual tem sido a marca deste momento de retomada?

Mulher Barbada - Eu acho que a grande realização é essa compreensão na prática da importância do carnaval, do nosso sentimento assim de comunidade, de comunhão mesmo, sabe? Depois de dois anos, ver o Carnaval de volta, essa expressão que faz pouco sentido, praticamente falando... Não tem um motivo real para a gente se reunir na rua, não tem uma questão prática. É justamente porque a gente quer, porque a gente deseja o encontro que vamos para rua pra fazer Carnaval. E aí, depois de dois anos sem ter essa festa, perceber a nossa vontade de voltar para a rua, nossa vontade de estar junto, de encontrar os amigos, de encontrar as suas tribos no meio do carnaval deixou bem claro para mim a importância desse movimento. Acho que é inexplicável, mas, ao mesmo tempo, eu compreendo agora que emoção faz com que a gente se reúna e durante um mês a cada ano para celebrar a vida mesmo na rua e para mim isso tem que ser a coisa mais marcante.

OP - Do Bloco das Travestidas ao Bloco Mambembe, o repertório apresentado é sempre muito diverso. O que vocês têm priorizado na hora de pensar o que deve ou não estar presente no Carnaval?

Barbada - O primeiro bloco das Travestidas, em 2017, não foi muito planejado, a gente só queria fazer essa festa acontecer. Com o tempo a gente foi aprendendo que o Carnaval de fato era importante pra gente aquele movimento. Eu tinha o desejo de ter uma banda de mulheres, de pessoas LGBTs e agora está bem concretizado. A nossa busca de repertório também é pela diversidade, a gente não se prende a um estilo ou a uma época, a gente tenta misturar de uma forma a democratizar. Tem letras de Carnaval que a gente se recusa a cantar por serem problemáticas. A gente tenta também escolher um repertório que seja respeitoso e que seja também parte da nossa identidade, diversa.

OP - O Bloco Mambembe se posicionou diante dos problemas enfrentados durante o Ciclo Carnavalesco com a Prefeitura de Fortaleza. Qual avaliação você faz desse processo desde a inscrição no edital até efetivamente subir ao palco?

Barbada - A grande questão mesmo foi a transparência. Temos que levar em consideração que a gente já vinha há alguns anos participando de um processo que eu julgava bem organizado e bem compreendido pela cidade. A gente tinha não só um processo de inscrição dos blocos, dos que vendem Carnaval, mas a gente tinha também uma coletiva de imprensa para entender o mecanismo do Carnaval na cidade. É uma festa que muda o fluxo da cidade como um todo, não só nos polos, mas também onde não acontece. Antes havia uma programação que a gente compreendia o fluxo. Para mim, a atual gestão ignorou a forma como se fazia e fez, na minha compreensão, de forma menos transparente e menos organizada. É importante entender que quem faz o Carnaval de uma cidade não é a Prefeitura, são os artistas. O papel dela é colocar um suporte, o que é uma obrigação do Poder Público. A gente que faz o Carnaval ficou completamente perdido, enquanto deveríamos ser o ponto central dos esforços, ficamos um como um pensamento posterior. Para mim, isso foi o pior de tudo.

OP - Carnaval também é tempo de reflexão sobre o que é considerado fantasia ou não. Inclusive com recorrência de certa folclorização de minorias, como indígenas e pessoas trans. Como você avalia a importância de buscar uma conscientização sobre possíveis opressões em meio à folia?

Barbada - Eu acho que é uma situação bem delicada porque, no Carnaval, a gente está na rua com aquela movimentação caótica, que faz parte do Carnaval. E, para entender essas nuances, precisaria saber quem são essas pessoas que estão ali, mas a gente não conhece todo mundo que está na rua. É uma questão superdelicada de ser abordada. No Bloco das Travestidas, no Mambembe, a gente procura temas que sejam mais abrangentes, como o Carnaval Primavera, que a gente pensa não ser ofensivo de nenhuma maneira. A melhor coisa que podemos fazer é pensar em maneiras de não cair nos mesmos erros, para a gente não continuar tendo homens vestidos de mulher e pessoas não-indígenas caracterizados assim. Em cima do Uma coisa que eu tenho achado interessante é a mudança no próprio mercado de fantasias de Fortaleza é que eu vejo cada vez mais as pessoas se distanciando de fantasias mais personificadas e colocando em um outro lugar, com mais cores, brilhos e texturas. É um movimento de criar um carnaval colorido e diverso sem necessariamente estar fantasiado. Eu acho que a gente só tem a ganhar quando a gente faz assim.

OP - O status de “artista local” carrega muitos desafios, a exemplo do enfrentado por você na Fica Vai ter Pop, quando acabou ficando sem camarim pós-show. Seja no Carnaval ou em outros eventos, por que é difícil ser “artista local”?

Barbada - Eu acho que não é uma questão de uma produtora, é uma questão cultural da nossa cidade. A gente vê isso não só no mercado de eventos e em festas, mas também no teatro e na dança. Quantas vezes os grandes eventos de arte como o Palco Giratório não colocaram as amostras nacionais e as amostras estaduais? Estão sempre pondo o artista do estado nesse lugar de ser “local”. Eu acho que isso é uma questão cultural muito forte, de dividir essas duas classes de artistas. A grande questão não é a nomenclatura. O Mateus Fazeno Rock comentou isso em um podcast. Ele falou que a grande questão não é ser colocado no status de “local” ou de “nacional”, o problema é a disparidade entre os tratamentos, cachês, estrutura e entre o que é oferecido para nós enquanto artistas. Por mais que um “artista nacional” concentre público e venda mil e tantos ingressos, quem está toda semana fazendo os eventos acontecerem sem parar são os intitulados “artistas locais”. Falta também compreender como é que a gente pode deixar essa disparidade menor porque, se a gente não evolui nisso, como é que os nossos artistas locais viram nacionais?

OP - O coletivo As Travestidas chegou ao fim. A partir de agora, quais os planos para a carreira e, principalmente, para os shows no carnaval de 2023?

Barbada - As Travestidas já não se apresentavam juntas há mais de um ano, a gente estava seguindo caminhos muito diversos e diferentes e percebemos que não íamos conseguir estar juntas. Então veio a decisão de sinalizar esse fim com um espetáculo e com festa para não deixar nossa história só morrer. Fizemos esse último esforço de reunir agendas e conciliar. Nós estamos seguindo de forma solo, todas muito bem com a carreira em lugares diferentes. Eu estou indo para a música com toda minha energia e força, não só no Carnaval, mas também no lançamento do meu trabalho autoral “Bárbara” deste ano. Eu tenho trabalhado muito na música esse ano, tentado também colocar o meu nome mais em evidência, me sustentar como artista além do coletivo. Eu acho que eu tenho feito isso já há bastante tempo.

Onde encontrar

A Mulher Barbada pode ser encontrada no Instagram (@mulherbarbadaoficial), Youtube (youtube.com/@MulherBarbadaOficial). No Spotify, estão suas músicas autorais.

Bloco Mambembe

O Bloco Mambembe, comandado por Mulher Barbada e Deydianne Piaf, acontece em 19 e 21 de fevereiro. No domingo, estará às 12 horas na Praça da Gentilândia e, às 16 horas, no Arena Iracema. Na segunda, às 19h20min, o Bloco terá apresentação no Aterrinho da Praia de Iracema.

As Travestidas

Mulher Barbada, Silvero Pereira (Gisele Almodóvar), Denis Lacerda (Deydianne Piaf), Patricia Dawson, Yasmin Shirran, Verónica Valenttino, George Santiago (Betha Houston) e Italo Lopes (Karolaynne) compõem o Coletivo Artístico As Travestidas. O grupo, que se juntou - com essa nomenclatura - em 2011 e encerrou suas atividades em janeiro deste ano.

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