Apesar de desconfiar algumas vezes ao longo da vida de que poderia ter Transtorno do Espectro Autista (TEA), foi apenas em junho de 2020 que a psicóloga Táhcita Medrado Mizael buscou uma avaliação profissional. Durante o isolamento social, à medida que conseguiu analisar o próprio comportamento, percebeu que não era "apenas" uma ansiedade causada pelas incertezas do momento.
Doutora em Psicologia e pesquisadora do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP), Táhcita conta que, antes do isolamento, tinha o costume de ir todos os dias a locais abertos, com áreas verdes, para ouvir música e olhar o céu. Era uma das estratégias para lidar com a sobrecarga causada pelo autismo ainda não diagnosticado.
Além de perpassar pela vida de Táhcita Mizael, inicialmente como dúvida e, na fase adulta como diagnóstico confirmado, o TEA faz parte da área acadêmica e profissional da psicóloga. Desde 2020, uniu ao autismo às questões de gênero. Ao O POVO, ela detalha as especificidades no diagnóstico entre meninos e meninas e sobre como a raça também pode ter influência para a descoberta tardia de TEA.
O POVO - De que maneira se dá o diagnóstico do Transtorno do Espectro Autista na infância?
Táhcita Medrado - O diagnóstico de transtorno do espectro autista vai se dar com base em uma avaliação feita por profissionais que podem ser médicos, psicólogos, terapeutas ocupacionais, entre outros. A avaliação multiprofissional é a ideal, mas mais custosa em termos financeiros, então pouquíssimas pessoas fazem. Para ter o diagnóstico de autismo, é necessário que o indivíduo mostre, em qualquer fase da vida, déficit na interação e na comunicação social e comportamentos repetitivos e interesses restritos. Quando usamos a palavra 'déficit', é importante lembrar que vamos fazer uma comparação do indivíduo que vem para a avaliação com a população de desenvolvimento típico. O que é "déficit" vai variar de cultura para cultura. É necessário que essas características gerem algum tipo de prejuízo no funcionamento do indivíduo em uma ou mais áreas: na área escolar, no trabalho, na área de relacionamentos ou em um conjunto delas. E também é necessário que essas características estejam presentes no início do desenvolvimento, mesmo que ele não seja identificado na infância.
O POVO - Há particularidades entre as características do TEA em meninos e em meninas?
Táhcita - Essa é uma pergunta de pesquisa que tem tentado ser respondida ao longo dos anos. Por exemplo, existem na literatura algumas informações que vão dizer que às vezes as mulheres não são identificadas porque o hiperfoco — ou seja, esse interesse restrito, intenso — que elas têm é sobre algo considerado compatível com o gênero delas. Por exemplo, se uma menina apresenta um hiperfoco em bonecas ou em princesas, a família pode considerar um comportamento típico. Também tem estudos que mostram que algumas características do autismo podem ser apresentadas de maneira internalizada ou externalizada, em termos de comportamentos. Por exemplo: o que, em inglês, chamamos de tantrum e podemos chamar de crises. Às vezes as pessoas veem como manha, mas não é uma manha no caso do autismo. A criança quer alguma coisa e precisa ser aquela coisa específica e, se a família não der aquela coisa, ela se joga no chão e começa a chorar, a bater na parede ou a se bater. Esses comportamentos externalizantes, que podem ser uma das características do TEA, são inclusive reforçados quando são emitidos por meninos. Se uma menina fizer isso, possivelmente ela vai ser punida, vão falar que ela não está bonita, que ela não está se comportando como uma menina etc. Há essa hipótese, então, de que logo no começo da infância as meninas aprendem que tem certas coisas que elas não podem fazer. Em vez de mostrarem desconforto a partir desses comportamentos de agressão muito visíveis, elas vão ter comportamentos internalizantes, como ficar quietinhas, entrar em quadros de ansiedade, em quadros depressivos que vão ser diagnosticados. Só mais para frente, geralmente na vida adulta, os profissionais vão realmente notar que aquela depressão, aquela ansiedade, na verdade é um resultado do autismo.
O POVO - Uma vez que o TEA não é diagnosticado na infância, quais podem ser as consequências ao longo da vida da pessoa?
Táhcita - Em primeiro lugar, todas as pessoas autistas têm alguma necessidade de apoio. É o que chamamos de níveis de suporte no autismo e eles podem ir do nível um, que necessita de algum suporte, ao nível três, que precisa de um suporte muito substancial. Quando falamos de suporte, pode ser uma variedade de coisas: a necessidade de um acompanhante para fazer atividades de vida diária, ajuda para vestir as próprias roupas, para pentear o cabelo, para tomar um banho. Pode ser uma ajuda para socializar. Pode ser inclusive apoio sensorial. Ou seja, se eu estou em um ambiente, como uma sala de aula, que tem muito barulho, e eu tenho sensibilidade auditiva, posso utilizar um fone de ouvido para abafar esse volume. Quando olhamos estudos de mulheres adultas que tiveram diagnóstico de autismo depois dos 18 anos de idade, é muito comum ver relato de que elas sentiam que precisavam de algum tipo de apoio mas, como não tinham o diagnóstico, as pessoas simplesmente achavam que elas eram folgadas ou eram preguiçosas. Ou elas mesmas começavam a pensar: "Poxa, se todo mundo consegue fazer isso, porque que eu não consigo?" E isso leva a uma redução na autoestima, a um autoconceito negativo, que também são consequências negativas. Uma outra consequência é a alta probabilidade de receber um diagnóstico incorreto e, a depender do diagnóstico, o plano de intervenção vai ser completamente diferente do que seria feito no caso de um diagnóstico de autismo e pode inclusive prejudicar ainda mais a pessoa.
O POVO - Como as questões de raça podem interferir em todas essas questões?
Táhcita - Quando olhamos estudos que foram feitos com pessoas autistas, a própria literatura deixa muitas vezes de mencionar se houve participantes negros ou de outras raças não brancas. De maneira geral, para a população brasileira, conseguir um diagnóstico de autismo é difícil porque, em primeiro lugar, temos pouquíssimos profissionais que estão acompanhando a literatura e que têm esse treinamento para fazer a identificação que não seja a partir de sinais estereotipicos, o que faz com que muitas vezes as pessoas precisem pagar certos profissionais que têm esse treinamento, e acaba que a avaliação não é barata. Levando em consideração que no Brasil a maioria da população pobre é negra, se dependermos de um diagnóstico feito de maneira particular, já vamos ter uma porcentagem menor de pessoas negras com esse diagnóstico por conta da desigualdade social. Temos estudos na literatura que mostram que, quando comparamos crianças brancas e crianças não brancas, as crianças que não são brancas — e no caso desse estudo específico são crianças negras — recebem o diagnóstico de autismo em média 1 ano e 4 meses depois. E isso acontece mesmo quando há um controle sobre a renda dessas famílias. Há uma comparação entre pessoas que têm dinheiro e filhos brancos e pessoas que têm dinheiro e filhos negros e (uma comparação entre) pessoas que não têm dinheiro e têm filhos brancos e pessoas que não têm dinheiro e têm filhos negros. E mesmo quando controlamos a questão da renda, ainda assim temos essa diferença no tempo, na demora que essa criança vai esperar pra ter esse diagnóstico, o que mostra que é uma questão racial, nesse caso. Outro estudo que foi feito com mais de 400 crianças diagnosticadas em algum momento como autistas, nos Estados Unidos, mostrou que as crianças afro-americanas tinham 2,6 menos chances de serem diagnosticadas autistas na primeira consulta do que os seus pares brancos. Além disso, elas tinham uma chance 5,1 vezes maior de receber um diagnóstico de transtorno de conduta quando comparadas com as crianças brancas. Tudo isso mostra que o racismo em suas diversas dimensões, também vai atrapalhar um diagnóstico mais precoce desse indivíduo e aumenta a probabilidade de que a pessoa receba um diagnóstico incorreto.
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Edição OP+: Regina Ribeiro
Texto: Gabriela Custódio
Edição de arte: Cristiane Frota
Identidade visual: Lucas Jansen