O promotor de Justiça, Nelson Gesteira , da 106ª Promotoria de Justiça de Fortaleza, integrante do Núcleo de Investigação Criminal (Nuinc), do Ministério Público do Estado, atuou na operação Martírio, que a partir de uma denúncia realizada durante audiência, descobriu um caso de tortura envolvendo 72 internos na Unidade Prisional Professor Olavo Oliveira II (UPPOO II), em Itaitinga (Região Metropolitana de Fortaleza), denunciado pelo O POVO em setembro do ano passado.
A investigação, segundo o promotor, parte de acompanhamento realizado no sistema prisional cearenses desde as rebeliões de 2016. Segundo ele, foi entre 2015 e 2016 que aconteceram mais violações de direitos humanos dentro do sistema prisional cearense. Desde então, a situação, segundo ele, teve avanços.
Para o promotor, porém, se os procedimentos investigativos e a rotina implantada nas unidades prisionais, o sistema voltará a uma situação grave. Para o controle deste cenário, ele destaca que a presença dos promotores e dos magistrados nos presídios cearenses inibe a violência contra contra os presos.
O POVO - Como ocorre o acompanhamento do sistema prisional cearense por meio do Ministério Público?
Nelson Gesteira - Nós do Nuinc acompanhamos o sistema prisional desde 2016, (quando) nós tivemos o grande motim com 14 mortos e fizemos um grande relatório que virou ações penais e ações cíveis que foram penalizados.
O sistema prisional, a cadeia, o presídio, têm uma realidade em seis dimensões, têm um cheiro próprio, uma linguagem, uma forma de relacionamento, seja dos policiais penais, dos internos, dos familiares. É um universo bem complexo. E posso dizer que não existia (recentemente) violação maior aos direitos humanos do que as (que aconteceram nas) unidades prisionais do Ceará dos anos 2014, 15 e 16. As piores violações aos direitos humanos ocorriam naquele período, pois o Estado passava longe de dominar aquelas unidades.
Infelizmente vivemos aquela época e podemos vivenciar como aquilo era ruim para os internos, para a sociedade, para a família, para os policiais penais — na época agentes penitenciários. Pra mim aquilo era o caos. De lá pra cá, com um investimento maior do Estado, houve uma recuperação gradativa do sistema prisional. Hoje, em estrutura física e em garantias de direito, estamos em evolução, temos muito o que melhorar ainda, não temos que nos acomodar e regredir. Seja na abertura de novas vagas, alimentação, ofertas de cursos profissionalizantes e cultura para os internos.
OP - O que são os procedimentos de condução no sistema penitenciário?
Nelson - O (preso é) público em que o estado e a família, ambos falharam. O estado com saúde, educação, moradias, saneamento, promoção de emprego e renda a família. Falhou na educação daquelas pessoas que estão ali no sistema. É um público que é necessário ter uma ação especial, pois é fruto de muitas falhas. É o público que precisa ser recuperado e saber que é um público que foi brutalizado antes de entrar no sistema (prisional), como também ao entrar no sistema. Naquele período (2014 a 2016), o estado teve que usar a força, para o domínio e para contenção, foi necessário a utilização de procedimentos. Não posso confundir o procedimento de condução com torturas. A existência de procedimentos dentro da unidade prisional é necessária, mas não posso dizer que é tortura. O que eu tenho que combater não é o procedimento, é o desvio do servidor público que está aplicando o procedimento.
OP - No Ceará, a doutrina dos procedimentos inclui a tortura?
Nelson - O procedimento, na forma como está na doutrina e na instrução, não pode e não deve incluir atos de tortura. Não tenho elementos que indiquem isso, são situações que, sendo detectadas, são investigadas e o Ministério Público usa prova e havendo prova, ele processa. O estado do Ceará, em números absolutos, é o estado que mais processa agentes públicos por tortura no Brasil. Temos mais processos do que o estado de São Paulo, que tem uma população quatro vezes a nossa. Detemos mais ações penais e investigação em trâmite que estados mais populosos.
Isso quer dizer que a gente tortura mais? Não. Quer dizer que a gente investiga mais. Aqui nós temos um núcleo específico para tratar de violência e corrupção dos agentes públicos. A gente trata a matéria com mais responsabilidade. Por isso não posso dizer que a política pública aplicada pela SAP (Secretaria da Administração Penitenciária) implica na produção de tortura. Não tenho elementos para afirmar isso. O Ministério Público, ele tem que ter responsabilidade. Se eu levar (adiante) conjecturas sem provas, quem vira réu sou eu. E eu não tenho elementos para afirmar que é uma política de estado, mas tenho que revelar a você que existem desvios de condutas de policiais penais nas rotinas das unidades e existem fatos. Fora essa Operação Martírio, existem desvios pontuais nas rotinas das unidades que são investigados e, se conseguir provar, o MP faz as investigações e os próprios órgãos do Ministério Público acompanham as ações penais até a sentença final condenatória, que a gente espera, pela responsabilidade.
OP - Como começou a investigação da Operação Martírio ?
Nelson - Setembro de 2022, eu estava fazendo a audiência com o juiz Reis Viana e o defensor Delano Benevides e estávamos ouvindo um interno do IPPOO II com pedido de providência. Esse interno teria denunciado violência sofrida quando estava em Pacatuba, em outra unidade prisional, e na hora que a gente estava ouvindo ele, ele disse que o fato foi besteira, que a "peia" foi ontem na cela B1, eu sou na B2. Fiquei com aquilo na cabeça, terminamos de colocar as informações quanto ao processo dele e foi feito o termo da audiência, suspensa a gravação e pegamos mais informações: qual a localização, se tinha o nome de alguém.
Pegamos alguns dados e, em comum acordo com o juiz, o defensor público e o servidor da vara, fomos até Itaitinga, no IPPOO II. Chegamos 16h30min, tinha cerca de 30 presos no pátio, entrei no pátio e achei estranho, pois nenhum dos 30 presos que estavam no pátio tinha qualquer agressão física. Eles estavam em procedimento, sentados e com a mão na cabeça. O procedimento em si não é desumano, o que é desumano é um preso que está na posição de procedimento ser agredido. Aquilo ali é inadmissível. Aquilo (procedimento de condução) é necessário para conter em unidade com 1.200 e 1.400 homens. Se for tudo desorganizado, eles não têm aulas, tem que ter rotina.
Vimos internos sem lesão alguma e continuamos andando no corredor que tinha as celas. Quando foi perguntado aos internos das últimas celas se tinha alguém lesionado, todos levantaram as mãos.
OP - Todos estavam lesionados? O que foi feito a partir dessa situação?
Nelson - Os 72 internos lesionados. Nós propiciamos a retirada desses internos. Alguns com lesões mais leves, manchas rochas, machucados, coxas machucadas, costas machucadas, vergalhão da ação do cassetete, a tonfa, que eles utilizam lá. Foram de imediato fotografados e individualizados quem eram esses internos. Fiz contato telefônico com o meu coordenador, promotor Humberto Ibiapina, com o nosso procurador-geral, doutor Manuel Pinheiro, o controlador geral de disciplina, Rodrigo Bona, o secretário da administração penitenciária, Mauro Albuquerque, delegada de assuntos internos, Adriana Câmara, sobre a gravidade dos fatos que nós ali encontramos.
Em conversa com o magistrado, adiantei as solicitações que o MPCE ia requerer no procedimento, de afastamento da direção da unidade, de requisição das imagens do circuito de segurança, da submissão de todos os internos ao exame de corpo de delito. Depois dessas ligações, foi marcada uma reunião com o secretário Mauro e solicitado a ele que encaminhasse o Grupo de Apoio Penitenciário (GAP) para assumir a segurança da unidade e a preservação dos internos, pois eu estava requerendo o afastamento de toda a direção. Quinze minutos depois chegou o coordenador do GAP, afastamos os policiais do plantão e fomos tomar as medidas administrativas.
OP - Como foi a atuação do secretário Mauro Albuquerque?
Nelson - O secretário (Mauro Albuquerque) se demonstrou indignado com a situação, ali mesmo, administrativamente, ele afastou toda a direção da unidade e designou um interventor e nos ofereceu apoio e logística para que os presos fossem encaminhados para realização da perícia médica legal. O nosso procurador-geral conversou com a governadora (Izolda Cela) e entendeu a fortaleza do que estava acontecendo e foram designados peritos para reforçar a equipe e, em menos de 24 horas, nós tínhamos os 72 laudos.
Se você está com mancha roxa e for medicado com anti-inflamatórios e anticoagulantes, aquele hematoma cede rápido e é algo que pode prejudicar a produção da prova. Tinham alguns que estavam mais machucados e é necessário que, para preservar a prova, que fossem submetidos ao exame naquele momento. Em menos de 10 dias estava completa a investigação da Operação Martírio, com tomada de oitivas, análise das imagens do circuito e produzindo uma prova substancial, que virou uma denúncia-crime.
OP - Como está o processo da operação Martírio atualmente?
Nelson - O processo corre na 1ª Vara da Itaitinga e quem acompanha é a doutora Ana Gesteira, e está em fase de instrução. A denúncia foi recebida, os presos — na época foi decretada a prisão preventiva (de agentes) —, foi feito o afastamento deles da função pública, foram afastados da unidade. Os fatos são de setembro e foram seis dias de audiência; todas as vítimas foram ouvidas, os réus foram interrogados, já está bem adiantada a instrução, foram requisitadas diligências pelo MPCE e pela defesa e está aguardando o cumprimento dessas diligências para que o processo venha ao MPCE para que a gente apresente a nossa conclusão sobre esses fatos, para que vá para a defesa e em seguida a sentença.
OP - Qual o comparativo do que houve no Ceará da situação do sistema penitenciário de 2016, quando foram mortos 14 internos em menos de 24 horas, e a atual?
Nelson - O Estado tem o controle de todas as unidades. Em todas as unidades, havendo ou não facções nelas, a comida que o faccionado come é a mesma que não faccionado come. O chefe da facção escolhia quem comia e quem não comia. O preso recebia as alimentações e levava para dentro e muitos internos tinham que pagar, os familiares tinham que pagar as organizações criminosas para ter alimentação, para atendimento médico, para receber visita. Gerava uma renda para organização criminosa estúpida.
O estado pagava a empresa fornecedora e, lá dentro, a facção fazia daquilo um mercado. Hoje não tem mais notícia disso. Não tem mais o domínio, aquele controle do quantitativo de telefones; nós, do Nuinc, fizemos dezenas de intervenções, acompanhando, pois depois que o estado começou a ter o domínio da unidade, os aparelhos entravam por meio de corrupção. E fizemos investigações que detectaram, que, a época, agentes penitenciários facilitavam a entrada dos celulares nas unidades e (destacamos) várias ações com condenação de policiais penais, que foram excluídos. Além da prisão, ele também perde o emprego.