A trajetória tortuosa de Ruthiellen e Ruth Pereira de Lima não deixam esmorecer o sorriso no rosto das das gêmeas siamesas cearenses. Nascidas ligadas pelo abdômen, as duas realizaram a cirurgia de separação quando tinham 1 ano de idade. Desde então, 20 anos depois, as irmãs tiveram de conviver com as dificuldades inerentes à sua condição física.
As duas conviveram com o bullying durante os anos na escola, experiência que acabou por dificultar o processo de aprendizagem das duas. As gêmeas ainda afirmam que a falta de amparo por parte dos professores e dos diretores foi outro fator que impossibilitou que as duas tivessem a formação escolar adequada — motivo pela qual as duas não chegaram a concluir o Ensino Médio.
Mas os sonhos para o futuro mantêm o brilho dos olhos. Ruthiellen — Ellen —, diz que a prioridade é concluir os estudos, enquanto segue tracionando a carreira como digital influencer — hoje, ela conta com mais de 30 mil seguidores no Instagram. O objetivo é mostrar a sua rotina para as pessoas como forma de desmistificar a sua condição. Já Ruth tenta superar a sua timidez com o canto, um de seus hobbies prediletos. Paralelamente, se prepara para buscar o desejo de cursar Psicologia, de forma a ajudar pessoas que passam por momentos de dificuldade.
O POVO - Como foi o período da infância logo após a cirurgia e a experiência na escola?
Ellen - No geral, a minha infância foi muito boa. Brinquei bastante com meus colegas. Quando lembro deste período, me recordo bastante da minha avó. Tudo era adaptado para nós duas, até as brincadeiras. As crianças faziam de tudo para nos incluir . Mas a minha infância na escola foi muito difícil. Minha irmã e eu sofremos bullying por não sermos consideradas iguais (aos demais). Nossos professores também não nos davam apoio, eram distantes. Tivemos a oportunidade de estudar em escolas particulares e públicas e, infelizmente, o cenário era o mesmo. Quando aconteciam estas situações, procurava ajuda dos meus pais e reportava tudo aos diretores. Acontecia todas as semanas, praticamente. Sempre chegava em casa chorando e minha mãe tinha que me consolar. Isto nos afetou bastante, porque era muito difícil conseguir amigos. Acabei repetindo de ano, não foi nada fácil.
Ruth - Lembro de sofrer bullying na escola. Era algo que realmente nos afetava. Mas, tirando estes problemas, gostava bastante de estudar português, ciências e inglês. Também tenho déficit de atenção e, na escola, tive dificuldade com isto. Sofria muito quando os professores apagavam a lousa, porque tinha bastante dificuldade em acompanhar e em pedir ajuda aos meus colegas. Mas, também conseguia me divertir. Quando era criança e usava a minha cadeira de rodas, a minha tia acabava brincando comigo. Gostava de me imaginar como médica.
O POVO - Depois das experiências vividas na escola, que desejos apareceram durante a adolescência das duas?
Ellen - Quando estava no Ensino Médio, percebi que estava chegando aquele período de escolha de qual curso escolher para a faculdade. Só que tive uma endometriose. Sentia muitas dores, que acabaram por me distanciar da escola. Faltava muitas aulas. Então, acabei desistindo de estudar. Ainda tenho o desejo de, futuramente, ingressar em uma universidade. Mas, no momento, o meu objetivo é fortalecer as minhas redes sociais e virar uma influenciadora digital. Também penso que acabei me desmotivando de estudar devido à falta de auxílio do colégio. Quando estive doente, por exemplo, nenhum apoio veio quando precisei faltar por causa da endometriose. Tinha que me virar praticamente sozinha com as atividades e não era nada fácil. Eu era bastante esforçada, mas acabei tendo de me virar sozinha. Posso dizer que fui bastante excluída, nem dos passeios escolares participei.
Ruth - Tinha e tenho o sonho de ser psicóloga. Para isto, era necessário muito estudo e uma rotina muito puxada, algo que não podia ter naquele momento. Na época da escola, faltava muitas aulas por causa das dores que sentia. Várias pessoas acabavam questionando o motivo de tantas faltas e isso me deixava muito triste. Alguns acabavam não entendendo as nossas condições físicas.
O POVO - E como surgiu a ideia de compartilhar a vida das duas nas redes sociais e qual o objetivo desta empreitada?
Ellen - Quero quebrar o tabu da perfeição. Não dá para ficar perfeita por meio de uma cirurgia estética ou coisa do tipo. Muitas pessoas estão ficando doentes por causa disto. Também tenho o desejo de escrever um livro para contar a nossa história de vida e as coisas que estão acontecendo agora no nosso cotidiano. Já tenho até ideia para a capa (risos). Quero influenciar outras pessoas para o bem, principalmente aquelas inseridas em um contexto de dificuldade. Quero mostrar uma realidade diferente daquela esperada pelos outros, uma que não pode ser maquiada através de uma cirurgia. É comum as pessoas terem uma perspectiva sobre o corpo perfeito e é preciso mostrá-las o oposto. Dá para se ter uma vida saudável e quero mostrar isto para os outros, principalmente aos que sofrem com ansiedade e depressão.
Já nos meus vídeos, costumo abordar a autoestima. É necessário nos enxergar como pessoas bonitas, não importa as palavras ditas pelos outros. Nossa autoestima é, realmente, muito importante. Precisamos saber lidar da forma correta com o preconceito.
Ruth - Sempre tive o desejo de mostrar a minha rotina para as pessoas, não somente aquelas que têm curiosidade sobre a minha vida. O problema é que preciso ficar muito tempo deitada, o que acaba limitando um pouco a minha mobilidade. Mas, assim como a minha irmã, quero escrever um livro. Diferentemente dela, desejo fazer a obra sobre o meu primeiro namorado, que já morreu. Seria ótimo poder relembrar um pouco mais sobre ele. Gostaria de contar a história dele, mesmo esta sendo triste. Quero mostrar a todos o quanto ele foi importante na minha vida.
O POVO - Como está a vida das duas hoje e quais são os planos para um futuro próximo?
Ellen - No momento, o objetivo é expandir o meu trabalho. Acredito que o interesse dos outros me motiva ainda mais a mostrar o meu dia a dia. Quero participar de podcasts, viajar pelo mundo, dar palestras. Temos uma grande história. Penso que é preciso compartilhar o que acontece nas nossas vidas, até porque não existem muitas pessoas em nossa situação. Penso que as pessoas gostam de novidade.
Ruth - Posso afirmar que estou acostumada com o interesse das pessoas. Acho que tenho lidado bem com a curiosidade dos outros. Eu e minha irmã somos bem tranquilas em relação a isto. Quero continuar desta maneira. Para um futuro próximo, quero começar a escrever o meu livro e me preparar para, quem sabe, tentar entrar em um curso de Psicologia.
O POVO - Ellen, como tem sido a sua experiência com o seu atual namorado e de que maneira a sua família reagiu quando se mudou?
Ellen - Estamos juntos há oito meses. Foi tudo muito rápido. Nos conhecemos por meio das redes sociais. Começamos a conversar em um dia e, no outro, ele já estava aqui em casa. Perguntei para a minha mãe se eu poderia ir morar com ele. Ela consentiu (risos). Minha mãe gosta muito dele. No início, fiquei muito triste por estar longe da minha família. Chorava muito mesmo. A minha irmã sempre foi a minha companheira. Mas, mesmo tendo sofrido muito, precisei continuar com a minha vida. Precisei voar. Mas nunca deixei de voltar para minha casa para rever as duas.
Muitas pessoas acabam me perguntando se tenho o interesse em ter uma família, mas, sendo sincera, não tenho. A minha paciência é bem curta (risos). Sou bastante apocalíptica (risos). No entanto, a minha experiência de estar junto com a meu namorado tem sido maravilhosa. Ele me ajuda com muitas coisas, como na preparação das refeições e nos meus vídeos. Hoje, a minha mãe não precisa ir comigo para as consultas, por exemplo. Faço tudo com ele.
Ruth - O processo de estar longe da minha irmã foi bastante difícil. Ela foi a minha dupla durante toda a vida. Mas, hoje tenho vivido bem longe dela. Adoro quando a minha irmã vem me visitar. Amo ver ela. Também gosto bastante do namorado dela. Gosto de ver os dois juntos.
Em relação a minha vida amorosa, posso dizer que estou dando um tempo. Não tenho pressa. Sei que vou encontrar outra pessoa naturalmente.
O POVO - Existem assuntos que as duas não gostam de compartilhar com os seguidores?
Ellen - Costumo dizer que sou um livro aberto. Não temos muitas objeções em relação a perguntas. Óbvio que, às vezes, as pessoas passam um pouco do limite e acabam tocando em assuntos um pouco desconfortáveis. Acabo não respondendo algumas perguntas. Deixo de lado.
Mas penso que as pessoas gostam dos meus conteúdos porque exponho a minha vida como ela é. Não tenho vergonha de mostrar quem sou. Ninguém é melhor do que ninguém. As pessoas precisam entender isto. É comum algumas curiosidades surgirem quando abro a caixa de pergunta durante lives. Respondo a maioria, com toda a tranquilidade.
Mesmo assim, gosto de frisar que um dos principais objetivos do meu conteúdo é melhorar a autoestima das pessoas. É preciso parar de reclamar da vida. Sempre lembro para os outros que existem seres humanos em situações bem piores do que a nossa. As UTIs estão lotadas. Sei bem o que é passar sufoco, mas não reclamo. Viva o hoje. A vida é linda.
Ruth - Somos, realmente, bem abertas. Costumamos responder sobre muitos assuntos. Mesmo a minha irmã tendo mais seguidores, recebo perguntas e sempre respondo. Mas, o que sempre digo é para não desistir dos seus sonhos, mesmo diante das dificuldades. Se você não se aceita da maneira como deveria, é hora de mudar a situação. Todos são iguais. É preciso mudar a percepção das pessoas.