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"As tecnologias potencializam a violência contra a mulher"
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"As tecnologias potencializam a violência contra a mulher"

Pesquisadora, professora e advogada, Mariana Valente remonta uma década de violência política de gênero
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Pesquisadora Mariana Valente, autora de Misoginia na internet
 (Foto: Divulgação)
Foto: Divulgação Pesquisadora Mariana Valente, autora de Misoginia na internet

Doutora em Direito pela USP, advogada e professora da Universidade de São Galo, na Suíça, Mariana Valente repassa uma década de episódios de violência de gênero no Brasil.

No recém-lançado “Misoginia na internet” (editora Fósforo), a pesquisadora joga luz sobre as tensões e disputas que resultaram na elaboração de um aparato jurídico para tentar coibir esses episódios, do qual fazem parte as leis Carolina Dieckmann e de Violência Política.

Em conversa com O POVO, Valente afirma que “as tecnologias trazem novas formas de violência ou potencializam algumas formas de violência”.

O POVO – Do ponto de vista da pesquisa sobre o tema da misoginia na internet e do direito, o que significa quando as esferas do virtual e da realidade passam a se confundir, a não haver distinção? Que repercussão isso tem para a violência de gênero?

Mariana Valente – Na década de 1990, muitas feministas acharam que a internet ia ser a libertação para as mulheres por causa de todas as desigualdades que estão ligadas ao corpo ou a ambientes que não penetrariam na internet. Acho que já não era assim naquele momento, mas as coisas mudaram muito, primeiro porque a internet mudou muito. Com o desenvolvimento das tecnologias, o próprio corpo começou a habitar a internet de outro jeito e a internet a habitar o nosso corpo. Mas também por causa de uma coisa que já existia e que é: não tem como separar. Não dá para pensar que uma pessoa que entra na internet deixa a bagagem dela para trás. Todas as desigualdades que estão presentes nas nossas sociedades estão ali, mas são transformadas. Acho que esse é o ponto principal. Porque ali tem novas potencialidades de comunicação, e isso vale dos dois lados. Valeu muito, por exemplo, para novos movimentos de mulheres nascerem nesses espaços. Tem muitos feminismos novos que todas as pesquisas mostram que estão ligados às tecnologias digitais e às formas como mulheres de lugares diferentes do mundo conseguiram se conectar, influencias globais trocadas, e isso evidentemente gera uma reação. Por outro, temos também os conservadorismos conseguindo se unir nesse espaço. Uma coisa de que a gente começou a ficar mais consciente ultimamente são esses grupos masculinistas que se aproveitam, às vezes de espaços anônimos, às vezes de espaços não anônimos, para se juntar, formar um celeiro de ideias extremistas, misóginas, e isso vai se espalhando pela rede em diferentes velocidades. Quer dizer, há um extremismo grande em “chans”, por exemplo, mas também há uma expressão disso nas redes sociais que a gente usa todos os dias. As tecnologias trazem novas formas de violência ou potencializam algumas formas de violência, como ataques em massa, ataques anônimos e disseminação das imagens íntimas com uma velocidade totalmente impensável antes. A gente tem uma renovação, por meio da tecnologia, de formas de opressão que já existiam. Da perspectiva do direito, acho que essa potencialização deixou algumas coisas mais evidentes, mas trouxe a necessidade de olhar para esse espaço como um espaço que merece uma atenção especial. Por muito tempo, apesar de a internet ter começado a entrar na vida, demorou para o direito se dar conta de que o direito que existe para fora da internet também deveria se aplicar para dentro da internet. A gente precisava de medidas para dar conta disso. Isso não foi uma coisa que aconteceu automaticamente, foi preciso muita insistência, os movimentos falarem muito disso e a mídia começar a contar os casos e mostrar a gravidade. E acho que ainda hoje a gente tem uma dificuldade nesse sentido.

OP – Inicialmente houve uma dificuldade de caracterizar o que seria a violência de gênero online. Isso foi superado? Qual o panorama hoje?

Mariana – Isso está bem menor hoje, a gente vê muita decisão judicial já reconhecendo a aplicação do direito para os espaços digitais. A gente vê esse debate acontecendo no Legislativo. Há várias comissões, investigações no STF em andamento etc. Acho que, desde 2018, tanto a mídia quanto as instituições começaram a olhar muito para a internet como um espaço que merece atenção e debate de regulação. Agora, o que sinto é que é uma dificuldade manter o tema da misoginia e da desigualdade de gênero nessa pauta, apesar de a internet ser reconhecida cada vez mais como um espaço a ser debatido, regulado e ser até prioridade, como no caso do TSE – foi o principal tema do Judiciário nas últimas eleições e o que mais chamou atenção. Acho que pouca gente diria hoje que não tem importância o que acontece na internet, mas o tema do gênero vai ficando sempre marginalizado. E a gente vê isso nos espaços em que se discute o assunto. O tema ganha alguma centralidade, mas muito rapidamente é levado para as margens. Nos ataques às escolas que aconteceram neste ano, por exemplo. Na cobertura, houve quem olhasse para o aspecto misógino, mas isso não ganhou centralidade. Todo mundo ficou muito preocupado com o que estava acontecendo, mas o fato de que esses ataques foram na sua maioria misóginos e estavam sendo realizados a partir de discussões misóginas em “chans” não ganhou tanta centralidade no debate. Acho que ainda tem uma dificuldade de compreensão de como a misoginia estrutura muitos dos problemas que a gente está discutindo hoje e ela vai ficando sempre nesse lugar da última página.

OP – Avalia que a própria estrutura das redes sociais tem relação com a misoginia, ou seja, que elas podem ser pensadas arquitetonicamente para favorecer condutas desse tipo, que geram engajamento a partir do ódio?

Mariana – Ótima pergunta. Eu acho que as arquiteturas têm muito a ver com a forma como as pessoas se comunicam e que tipo de assunto, postagem e perfil ganha proeminência. É um pouco simplista a gente falar que as redes determinam tudo. A radicalização que vem acontecendo no país desde 2013 não está totalmente baseada nas arquiteturas, mas a gente tem uma imbricação, disso não tenho dúvidas. Acho que hoje todas as pesquisas sérias olham para a arquitetura como uma construção específica das funcionalidades dessas redes sociais e como ela permite uma coisa ou outra. Eu tenho pesquisas nesse sentido. Um dos projetos que a gente tocou foi um laboratório sobre violência política de gênero nas eleições. A gente vê uma diferença muito grande entre o que acontece no Twitter, no Instagram e no Facebook precisamente por causa dessas arquiteturas. E aí quero dizer que é desde a capacidade de controlar a experiência e o perfil. Sobretudo as escolhas do que vai ficar proeminente e do que não vai ficar também têm muito a ver com as escolhas das plataformas que estão ligadas a manter os usuários mais tempo nas redes. São feitas para manter ali com atenção e com isso ganhar mais com publicidade, que é modelo de negócio delas. Elas sabem muito bem que alguns tipos de conteúdos prendem os usuários, e esses conteúdos não são necessariamente os que mais vão gerar reflexão. São os que mais vão gerar sentimentos muito extremos. Apesar de a gente ter que olhar para essas coisas com uma complexidade, não dá pra falar que é só isso que está radicalizando as pessoas, de fato as plataformas têm um papel nisso.

OP – Entre 2012 e 2022, período abordado no seu livro recém-lançado – “Misoginia na internet” (editora Fósforo) –, há a elaboração de leis importantes. A que desafios elas responderam nesse arco de tempo?

Mariana – Essa escolha de arco de tempo não veio no início da escrita do livro, mas muito naturalmente ficou evidente que era o arco que precisava ser trabalhado. Porque, apesar de não ser um livro só sobre leis, eu entendi a partir da pesquisa que as leis estruturam o debate porque vão expressando as preocupações de cada momento. Eu começo com a primeira lei, que é uma resposta a uma situação de misoginia que aconteceu na internet, que é a Lei Carolina Dieckmann (12.737/2012, sancionada em 30 de novembro de 2012). Esse é mesmo o marco, não tem nenhuma legislação anterior que olhe para isso. É o primeiro momento em que a esfera pública brasileira dá conta de um problema de uma forma que o Legislativo olha e fala que tem que dar uma resposta para isso. Por outro lado, 2013 foi o ano dos grandes protestos. Começamos a ter uma movimentação muito intensa no Brasil. Aquele ano significou muitas coisas, mas uma coisa que tento mostrar é que também significou um renascimento dos movimentos feministas nas ruas. Não é que estivessem mortos, mas desde 2011, bastante por causa de mobilizações digitais, começa um novo ciclo de feminismos, que é caracterizável por novas formas de protestos bem performáticas. Como, por exemplo, a marcha das vadias. Os movimentos vão com tudo para as ruas. Eles vão se expressando dentro e fora das redes, com um papel muito importante da internet na formação desses novos discursos feministas e também dos discursos de oposição a eles, e isso levando a uma conflituosidade que vai se materializando nos temas também que vão se desenrolando ao longo dessa década. Vão acontecendo ondas sucessivas de discussão. Tivemos o caso da Carolina Dieckmann em 2012. Toda análise que fiz mostra que não havia um debate de gênero maduro naquele momento. Acho que sobre nada, e sobre a internet também não. A gente olha para toda a cobertura e é muito difícil de achar algum jornal da grande imprensa realmente olhando para a questão de gênero que estava acontecendo. A cobertura do “Fantástico”, por exemplo, fica focada nos hackers. A preocupação era outra nesse caso, parecia ser que ninguém estava protegido na internet. E nunca se conseguindo dar o salto de falar: o que faz fotos íntimas de uma mulher serem disseminadas dessa forma, levantarem o interesse que levantaram, as pessoas compartilharem assim e isso gerar esse constrangimento para ela? Isso não chegou a ser suficientemente pauta. Foi em alguns veículos alternativos, mas muito pouco. Quando foi aprovada a Lei Carolina Dieckmann, ela nem se aplica ao caso dela. Fica claro que se aproveitaram daquele momento para cuidar de outras coisas. A lei diz respeito a invasão de dispositivo informático, que nem foi o que aconteceu com ela. Foi só em 2016 que a gente foi começar a ter outras legislações que olharam mais especificamente para a questão de gênero. Esses foram anos muito intensos de debate e de um ativismo muito grande querendo mostrar a importância dos temas de misoginia na internet que estavam por trás de conflitos naquele momento, seja no âmbito político seja como estavam afetando meninas e mulheres. Em 2016 temos a aprovação da Lei Lola, temos uma reforma em 2018 da parte dos crimes sexuais no Código Penal que começou a incluir também as questões de disseminação de imagem íntima, e aí já com debate de gênero, mesmo que essas leis não falem que a proibição se dá em função de um gênero. A gente vai vendo um reconhecimento progressivo, isso é inegável. Não é mais absurdo dizer que tem uma violência de gênero acontecendo na internet. Acho que o marco de 2022 é o da eleição em que se aplica a lei de violência política contra a mulher. É uma lei que vem na esteira dos debates que se iniciaram com o assassinato da Marielle em 2018 e a percepção de que a gente tem um problema de violência política que tem um componente misógino e racista muito forte, mas que também é uma lei que foi mais simbólica do que efetiva. E é um pouco desse jeito que vejo as leis, elas mais expressando coisas do que necessariamente resolvendo os problemas.

Trajetória

Mariana Valente também é diretora do InternetLab, além de professora de Direito na Universidade de São Galo, na Suíça

Livro

Pela editora Fósforo, lança agora "Misoginia na internet", obra na qual percorre o período que vai de 2012 até 2022, durante o qual episódios de violência foram marcantes

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