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Elizabeth Chagas: "Violência contra a mulher é uma pandemia invisível"
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Elizabeth Chagas: "Violência contra a mulher é uma pandemia invisível"

"Menina dos Porquês", a defensora pública geral do Ceará, Elizabeth Chagas, remonta como uma tragédia pessoal a guiou a uma trajetória voltada à defesa dos direitos da mulher
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Defensora Geral, Elizabeth Chagas, defende que a tecnologia precisa evoluir para garantir mais proteção (Foto: Fernanda Barros)
Foto: Fernanda Barros Defensora Geral, Elizabeth Chagas, defende que a tecnologia precisa evoluir para garantir mais proteção

Questionadora desde pequena, a atual defensora pública geral do Estado do Ceará, Elizabeth das Chagas Sousa, de 45 anos, foi a principal cabeça para o desenvolvimento do dispositivo georreferenciado conectado à tornozeleira eletrônica no Ceará.

O equipamento, do tamanho de um celular, é uma camada extra de proteção às mulheres vítimas de violência, porque é capaz de alertá-las sobre a proximidades de agressores.

Natural de Mamanguape, na Paraíba, Chagas atua na Defensoria Pública do Estado desde 2006, sem nunca ter deixado para trás o viés da busca pela garantia à proteção dos direito das mulheres.

O mandato de Elizabeth terminará no final deste ano. Chagas apoiou a chapa mais votada, encabeçada pela subdefensora Sâmia Farias. A votação aconteceu no dia 6 de outubro. A escolha, porém, ainda depende da escolha do governador do Estado, Elmano de Freitas (PT). 

Ao O POVO, Elizabeth revela detalhes sobre como a situação de violência vivenciada da forma mais brutal pela irmã dela, vítima de feminicídio aos 19 anos pelo namorado, a levou a lutar pela preservação dos direitos das mulheres. 

O episódio fez com que "A Menina dos Porquês”, como se denomina, levasse a causa como uma missão vitalícia, para que nenhuma outra mulher precise passar pelas consequências letais do machismo estrutural presente na sociedade.

O POVO - A senhora foi uma das precursoras da defesa do uso da tornozeleira eletrônica no Estado. Gostaria que detalhasse esta trajetória como defensora aliada a esta ideia.

Elizabeth Chagas - Eu trabalhei no Núcleo Especial de Defesa dos Direitos da Mulher (Nudem) durante oito anos e uma das grandes preocupações que nós tínhamos era a efetividade da medida protetiva. Muitas vezes, a mulher ficava com uma folha de orientações no caso de descumprimento da eventual medida protetiva. Em uma noite, enquanto dormia, tive a ideia de não só aplicar a tornozeleira para o homem, mas também o aparelho para as mulheres, de um modo que um se comunicasse com o outro. Até 2014, isso não existia no Brasil.

Marcamos uma reunião para poder tratar sobre isso e a Secretaria de Justiça (Sejus) comprou a ideia. Para mim, parecia inimaginável. Por que, afinal, onde é que vai arrumar um aparelho que se comunica com todas as tornozeleiras eletrônicas? A secretária de pasta, Mariana Lobo, descobriu que, nos Estados Unidos, existia um dispositivo que se comunicava com a tornozeleira, mas não era aplicado para Lei Maria da Penha ou para o enfrentamento à violência contra a mulher.

Conseguimos trazer o aparelho para o Brasil. A princípio, a ideia era que não fosse algo pesado, mas que ela (a mulher) pudesse usar como se fosse um celular, e, aliado a isso, tivesse a tornozeleira do homem e uma central de monitoramento dentro da Sejus.

O POVO - Como o dispositivo da vítima funcionava quando foi implementado aqui no Ceará?

Elizabeth - Na época, (a distância) era de 500 metros, e a mulher recebia um alerta: “Ele está se aproximando, se afaste”. Se ele não se afastasse, a Polícia era acionada, e eles iam atrás para efetuar a prisão. Tudo para que as mulheres tivessem segurança, confiassem na efetividade da Lei Maria da Penha e na proteção das medidas protetivas. Essa é uma das três melhores leis instauradas no mundo, mas precisa ser tirada do papel, então, para isso, a gente também pensou no projeto Mulher Sem Medo.

Foi um projeto criado para que a vítima tivesse mais um instrumento, junto a todos os outros que já existem, e que, somado aos demais, conseguisse dar efetividade à medida protetiva. Assim, ela conseguiria se sentir segura e passar a não ter esse medo de exercer seu trabalho, brincar com suas crianças e poder se locomover tranquilamente.

O POVO - A senhora, desde o começo, está acompanhando a evolução deste dispositivo. Percebeu mudanças desde a sua criação? Acredita que possa aperfeiçoar algo nele?

Elizabeth - A tecnologia precisa evoluir, tem que ter um formato de tornozeleira em que o agressor não consiga tirar e não vá agredir a mulher. A gente vê que no Estado do Ceará estão acontecendo muitos feminicídios, ainda que os homicídios tenham diminuído. E a gente viu que, na pandemia, aumentaram os números de violência doméstica. Porque, durante este período, as pessoas precisavam, obrigatoriamente, conviver ali dentro de casa, e não podiam pedir ajuda.

Mas onde? E para quem? Se é justamente na hora que essas mulheres levam os filhos para o colégio, ou que o marido vai trabalhar, ou na hora que elas vão trabalhar, que elas pedem socorro. Não é apenas escrever um símbolo na mão. E nem todas elas têm um computador, ou um celular, para poder pedir ajuda.

O POVO - Quanto ao número de usuários da tornozeleira eletrônica no Ceará, o que se pode considerar?

Elizabeth - Acho pouco ainda o número de tornozeleiras utilizadas no Estado, deveriam ser deferidas mais, porque é até mais barato que a prisão. Temos cerca de 200 dispositivos sendo utilizados atualmente. O tempo estipulado para o uso deve ser enquanto perdurar a ameaça (de violência). Até cessar. E a gente quer que ela cesse de uma forma segura.

O POVO - O sentimento de medo, quando acaba a medida protetiva, é novamente presente?

Elizabeth - A violência contra a mulher é uma ofensa aos direitos humanos extremamente grave, porque ela vai gerar uma pandemia invisível para a sociedade, que só começa a aparecer quando surgem os casos de feminicídios e as mulheres fisicamente violentadas. Mas a violência não é só física.

Eu atendi mulheres, por exemplo, em situações bem estarrecedoras, onde o marido levava a amante para casa, fazia relações com a amante e pedia para a esposa olhar para aprender como fazia. Imagina a cabeça de uma mulher dessas. Atendi, também, maridos que ministravam remédios para as mulheres, para elas ficarem um pouco mais alteradas na frente de outras pessoas.

Então, não é só a violência física que deixa marcas, mas há sequelas que também ficam na alma, dentro de cada pessoa. E essas marcas se alastram por toda sociedade. Não tem como falar de uma sociedade saudável enquanto houverem violências como estas.

O POVO - Elizabeth, pesquisando mais sobre este tema, em alguns discursos, a senhora disse que já vivenciou um caso de violência contra a mulher na sua família. Isso a motivou a trabalhar com isso durante a sua carreira?

Elizabeth - Tinha uma irmã. À época, eu tinha 20 e ela 19 anos, e ela foi vítima de um namorado. Foi um tiro no nariz. Um feminicídio, mas na época este nome sequer existia. Ele pegou 14 anos e 6 meses, e até hoje está foragido.

Quando falo que isso muda toda a família, é porque muda mesmo. A vida de mais ninguém será igual depois de sofrer uma violência como esta. E fica ainda mais claro quando você vê uma consequência mais próxima de você, como a vida da minha irmã.

E sim, (a morte dela) tem alguma influência, mas posso lhe dizer que, desde criança, eu tenho um estranhamento com relação às questões pré-moldadas que me são colocadas. Eu ficava brigando para não me inferiorizar. E eu sempre questionava o motivo disso. Era a menina dos porquês.

Nasci com esta inquietação. Quando eu era criança, a fatia de carne era maior para os homens. Eu dizia: “Oxe, por que é maior para os meninos?”. Me lembro de pegar um tamborete, botar para pegar a carne e comer às 11 horas. Eu não estava com fome, mas eu queria dizer que comi o pedaço maior.

Lembro do meu tio dizer: “Ah, vou passear ali”. E completava: “Mas são coisas de homem”. Era um costume. Eu dizia: “Mas eu quero ir também”, e ele respondia: “Mas você não vai”. Eu ficava brigando para não me inferiorizar. E eu sempre questionava o motivo disso. Era a "menina dos porquês", ele dizia: “Porque você é mulher”, eu dizia: “Mas você tem braço e perna igual a mim”. Sempre fui de afrontar, neste sentido, porque eu nunca aceitei que as coisas fossem feitas sem serem explicadas.

O sonho dela (da irmã) era ser uma professora de colégio, trabalhar com crianças. Se você falasse de vida, você estava falando sobre ela. É uma perda que marca todo mundo, que durante muitos anos eu não falei, principalmente quando estava no Nudem, porque achava que iriam valorizar menos o meu trabalho se eu dissesse que tinha acontecido algo na minha família.

Hoje falo porque entendo que isto não desvaloriza meu trabalho, mas faz parte de quem eu sou. Isso faz parte da minha vida. Eu sou todas essas coisas, sou tudo o que aconteceu comigo, na família do meu pai, e da minha mãe, tudo isso influenciou a ser quem eu sou hoje. E travar essas lutas também.

Essa é minha causa de vida: eu gostaria que nenhuma mulher morresse mais, e que nenhuma família passasse pelo que a minha passou.


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