Professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), João Cezar de Castro Rocha avalia que a vitória de Javier Milei na Argentina pode dar tração ao bolsonarismo, mas seus efeitos são limitados.
“Milei impulsiona a narrativa bolsonarista nas redes, mas não impacta de imediato o cotidiano brasileiro”, considera o historiador e pesquisador de Literatura Comparada.
Autor de “Bolsonarismo: da guerra cultural ao terrorismo doméstico” (Autêntica), Rocha enfatiza que, embora as chances de Milei se mostrar um bom governante no país vizinho sejam mínimas, figuras extremistas têm avançado recorrendo aos mesmos artifícios e receituários políticos.
“A extrema-direita fala o mesmo idioma”, adverte o especialista, aproximando os dois personagens (Bolsonaro e Milei).
O POVO – A Argentina elegeu um presidente que tem semelhanças estratégicas e retóricas com Bolsonaro. Como avalia essas duas figuras? Há de fato algo que vincula Milei e Bolsonaro?
João Cezar de Castro Rocha – Sem dúvida. Há algo que vincula Javier Milei, Viktor Orbán na Hungria, Donald Trump nos Estados Unidos, Andrzej Duda na Polônia, Duterte nas Filipinas e Jair Bolsonaro no Brasil. Trata-se do avanço transnacional da extrema-direita, que é o fenômeno político mais importante das duas primeiras décadas do século XXI. E é o mais importante porque a extrema-direita tem chegado ao poder, pelo menos na primeira vez, por meio de eleições livres e democráticas, não foi por meio de golpe de estado ou militar, mas a partir de uma estratégia inteligente e bem pensada, concertada e orquestrada transnacionalmente nas redes sociais. A extrema-direita aprendeu a conquistar corações e mentes, sobretudo das gerações mais jovens. Há pouco tempo o papa Francisco usou uma expressão notável. Ele disse que nós precisamos voltar a conquistar “corações, mentes e mãos”, as mãos que o tempo todo seguram um aparelho celular e digitam. O universo é digital porque nossa vida está na ponta dos dedos.
OP – Essa estratégia foi realmente importante para Milei na Argentina? Tem um receituário que é seguido por essa extrema-direita?
João Cezar de Castro Rocha – Tem, sim. Mais do que um receituário, uma retórica. Hoje quando pensamos em retórica, pensamos em discurso vazio. Eis a retórica do político, que fala muito para nada fazer. Mas a retórica, desde o século V antes de Cristo até o século XVIII, era a forma básica de organização mental e discursiva da cultura no ocidente. A retórica é um sistema discursivo que coloca à disposição do orador um repertório de temas, de imagens, de metáforas e de recursos linguísticos. Ela é fruto da primeira experiência política conhecida em que a voz tinha poder de convencer os outros e de criar lei. Quando a palavra assumiu o poder deliberativo na ágora ateniense, a retórica foi criada. É conhecida como a “arte do bem dizer”, mas um bem dizer que nada tem a ver com um dizer de forma bonita. Bem dizer significa dizer de forma tal que convença aquele que me escuta a fazer o meu desejo. Ela é um instrumento que permite ao orador adaptar sua fala a um público determinado para criar um afeto específico. A extrema-direita, inteiramente afinada com as características do universo digital, chega ao poder através da retórica do ódio, que é uma pedagogia de desumanização cotidiana do outro, do diferente, do adversário. Essa retórica tem um passo a passo e é seguida em todos os países onde a extrema-direita chegou ao poder.
OP –Milei falou bastante de ameaça comunista durante a campanha. Que outros procedimentos o senhor vê que o aproximam do bolsonarismo?
João Cezar de Castro Rocha – Em todo o mundo a extrema-direita avança com uma retórica que consiste em produzir medo. Porque a resposta mais usual ao medo é outro sentimento, o ódio, mas o ódio não é um sentimento abstrato. Eu não odeio em geral, o ódio é canalizado contra inimigos. Por exemplo, eu digo para os pais de família: a sua filha amanhã entrará num banheiro público e lá estará um homem, o seu filho amanhã na escola começará a sofrer uma doutrinação de identidade de gênero. Gera-se o medo, que tem por resultado a produção do ódio, mas o ódio precisa ter uma concretização. É aí que surge a figura do “professor doutrinador”, que é pior do que traficante, como disse Eduardo Bolsonaro. Um “professor doutrinador” que temos que eliminar, como falou o Milei. Ou como o governador da Flórida, Ron DeSantis, começou a perseguir, proibindo livros e disciplinas. Então, produz-se medo e cria-se um inimigo que é alvo da retórica do ódio, levando ao linchamento virtual e a uma mobilização da militância contra esse inimigo imaginário. Na Europa é o imigrante, no Brasil é o comunista, na Argentina é o peronismo, que seria para ele o equivalente ao comunismo. Todos eles investem sobretudo contra o sistema. O Milei dizia: “nós temos que vencer a casta”, a classe superior, o estamento máximo, a elite do sistema. O bolsonarismo é incompreensível sem a grande jogada que foi vender a imagem de Bolsonaro como antissistema. Por isso todos se apresentam como não-políticos ou como um não-político tradicional.
OP – Há muitos pontos de contato, então.
João Cezar de Castro Rocha – As equivalências são notáveis entre o Milei e Bolsonaro. A extrema-direita é um movimento transnacional que se utiliza das redes sociais para impor um paradoxo, que é o seguinte: ela hiperpolitiza o cotidiano para despolitizar a pólis. Numa pólis despolitizada, o projeto autoritário se impõe com mais facilidade. Isso acontece no mundo inteiro, não é um fenômeno brasileiro. Qual é a finalidade disso? É que dessa forma a extrema-direita transfere para a esfera da política a dinâmica e a lógica das redes. As redes não são polarizadas, são binárias, excludentes. É isto e não aquilo. Quando escolho isto ou aquilo, eu cavo trincheiras, ergo muros, e isso cria uma espiral de violência simbólica, cancelamentos e xingamentos. A hiperpolitização se realiza na esfera do afeto, não do projeto. Milei não apresentou um único projeto de país. A extrema-direita fala o mesmo idioma, usa o mesmo artifício.
OP – A vitória de Milei pode reabilitar o bolsonarismo?
João Cezar de Castro Rocha – Não. Quando o bolsonarismo se torna o fenômeno que venceu as eleições de 2018? Quando há um encontro da energia política das ruas com a agitação das redes sociais. Quando ocorre, há um tsunami. Veja que hoje, novembro de 2023, a força do bolsonarismo nas ruas está em decadência absoluta. Convocaram manifestações para 15 de novembro, e elas foram pífias, de Fortaleza a Porto Alegre. Ao mesmo tempo, outubro e novembro foram os meses de maior intensidade das redes bolsonaristas, com importantes vitórias, conseguindo impor versões e narrativas e criando constrangimentos efetivos para o governo. A equação é: quanto mais fraca é a rua, mais intensa deve ser a rede social como forma compensatória. A energia que se acumula nas redes, se chega às ruas, é um tsunami. Milei impulsiona a narrativa nas redes, mas não impacta de imediato o cotidiano brasileiro. Estamos longe das eleições de 2026. E a situação é distinta. Milei terminou o primeiro turno cinco ou seis pontos atrás de Sergio Massa, o que foi uma surpresa. No Brasil, dia 3/10/2022, Lula saiu na frente seis pontos percentuais em relação a Bolsonaro. Na Argentina, em duas semanas, Milei não somente recuperou os pontos, como colocou 11 pontos de dianteira. Milei ganhou 17 pontos em duas semanas. É espantoso, isso não aconteceria sem a dinâmica incessante das redes de extrema-direita. No Brasil Lula saiu da vantagem para uma vitória muito apertada. Em três semanas, Bolsonaro conseguiu recuperar 4 milhões de votos com intensidade nas redes. Mas não há uma transferência de cenário para o Brasil. Além disso, estamos em 2023, até a eleição haverá pelo menos 30 meses completos de governo de Milei. Se o Milei fizer um governo excepcional, favorece o bolsonarismo. As chances concretas de Milei realizar um governo excepcional são as mesmas de Bolsonaro se tornar um cidadão civilizado com enorme grau de empatia pela dor do outro.
OP – Milei terá condições de implementar suas propostas na Argentina?
João Cezar de Castro Rocha – As políticas do Milei são inconsistentes. Por exemplo, não é possível dolarizar a economia argentina por um motivo simples: não há dólares em quantidade suficiente para dolarizar a economia. Se isso acontecer, haverá crise de liquidez inédita. Sobre acabar com o Banco Central, só há três países no mundo que não têm BC. O mais conhecido deles é a Micronésia. Portanto, muitas das propostas do Milei são absolutamente irrealizáveis. São excelentes memes, apenas. Ele é um meme ambulante. A possibilidade de Milei se tornar uma figura exitosa como gestor público, de modo a influenciar as eleições brasileiras em 2026, não parece hoje a mais provável. Claro que a vitória dele impulsiona o bolsonarismo, porque boa parte do que nós chamamos de política é sobretudo projeção do desejo de possibilidade de poder. Milei ganhou. Se Trump ganhar nos Estados Unidos, aumenta o desejo da possibilidade de poder. Essa perspectiva de poder é fundamental para a ação política.