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A possível relação do caos climático com a "chuvarada"
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A possível relação do caos climático com a "chuvarada"

O cientista Alexandre Costa explica como as mudanças no clima global podem ocasionar eventos extremos, como as fortes chuvas em Fortaleza no Carnaval
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Alexandre Costa tem doutorado em Ciências Atmosféricas pela Universidade do Colorado (EUA) e pós-doutorado por Yale (EUA). É professor da Universidade Estadual do Ceará (Uece) e um dos grandes especialistas no tema da mudança climática (Foto: Acervo pessoal)
Foto: Acervo pessoal Alexandre Costa tem doutorado em Ciências Atmosféricas pela Universidade do Colorado (EUA) e pós-doutorado por Yale (EUA). É professor da Universidade Estadual do Ceará (Uece) e um dos grandes especialistas no tema da mudança climática

Para Fortaleza, a segunda maior chuva em 50 anos foi avassaladora. Com máxima de 215 milímetros no sábado, 10, a precipitação paralisou o Carnaval e desencadeou inundações e desabamentos. Entre dezenas de pessoas desabrigadas, acende-se um alerta para o futuro nem tão distante: com a emergência climática, eventos extremos serão cada vez mais frequentes.

O cientista do clima Alexandre Costa, professor da Universidade Estadual do Ceará (Uece) e divulgador científico no canal "O que você faria se soubesse o que eu sei?", explica como secas severas e chuvas intensas estão relacionadas ao El Niño e às mudanças climáticas provocadas pelo ser humano. Segundo ele, Fortaleza precisa investir — muito —, para reduzir a vulnerabilidade aos efeitos da crise climática.

O POVO - Quão interligada a intensidade dessa chuva pode estar com o El Niño e com a crise climática?

Alexandre Costa - O papel do El Niño, em geral, é produzir uma tendência de redução das chuvas (no Nordeste). Essa, em geral, é a influência em grande escala que o El Niño faz, mas isso não significa que não chove ou que não tenha eventos severos. O El Niño influencia muito mais sobre o total da chuva, que tende a ficar abaixo do normal.

Outro aspecto é o seguinte, esses eventos são raros. Uma chuva como essa é, tipicamente, com o que a gente chama de tempo de decorrência, de décadas. Em geral, se precisa esperar décadas para ter eventos como esse. Mas aí entra a questão da emergência climática, do aquecimento global.

Essa relação de probabilidade, esse tempo de recorrência muda em razão das mudanças das propriedades físicas da atmosfera aquecida. Um ponto fundamental aqui: quanto mais quente a atmosfera estiver, mais vapor d'água ela é capaz de armazenar. Isso tem uma dupla consequência. A primeira é que se cabe mais vapor na atmosfera, ela é capaz de tirar mais vapor d'água do solo, da vegetação e dos corpos hídricos. E isso faz com que as secas sejam mais intensas.

Por outro lado, uma vez que ela satura, enche a sua capacidade, o restante vai ser transformado em água no estado líquido. Se ela tem mais vapor d'água dentro de si, ela tem muito mais matéria prima para produzir tempestades.

O aquecimento global poderia até nem mexer no total — não é exatamente isso que está previsto, especialmente na parte sul do nosso Estado e do Nordeste, a tendência do total de chuvas é reduzir, realmente. Mas mesmo que o total de chuvas não diminua com o aquecimento global, muda a distribuição. Ela fica deslocada para os extremos.

De um lado, a duração da estação seca, dos veranicos, o número de dias sem chuva, aumenta. E do outro, aumenta a tendência, estatisticamente, de aumentar a chuva produzida em um único dia, que é justamente o que a gente tá falando, e de aumentar as chuvas produzidas em períodos curtos de tempo, como cinco dias. As chances de quebra de recordes desses parâmetros também aumentam com o aquecimento global.

OP - Mas é possível dizer que essa chuva do Carnaval, em específico, é causada pelo aquecimento global?

Alexandre - Para cravar isso seria preciso fazer um estudo de atribuição, que envolve usar modelos computacionais e uma série de ferramentas. Coisa que ainda não foi feita, pelo menos por enquanto. O que a gente pode dizer é o seguinte: o aquecimento global torna esse tipo de evento muito mais provável. Isso a gente pode dizer com toda a certeza.

A gente está, inclusive, falando desde 2007 (...) em função do quarto relatório do IPCC (Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas).

E é aquela história, parece que nada foi levado a sério desde então. Nós estamos em um cenário de muita vulnerabilidade tanto às secas, quanto às enchentes. É muito complicado realmente uma cidade se preparar para uma chuva de 220 mm, é realmente assustador… E estamos vulneráveis também do ponto da solução do problema, da raiz do problema, que é definitivamente abandonar o uso de combustíveis fósseis e zerar o desmatamento. Parece que a sociedade não consegue conectar uma coisa à outra.

OP - Inclusive, na ocasião da seca no Amazonas, em 2023, os pesquisadores alertaram para a influência da crise climática no fenômeno.

Alexandre - Pronto, exatamente. Sem o aquecimento global, aquela seca seria praticamente impossível de acontecer. A chance dela acontecer seria virtualmente zero.

E embora para a Ciência a relação de causa e efeito seja muito clara, muito nítida — CO2 demais na atmosfera, muitos gases de efeito estufa —, infelizmente, para a sociedade, para os governos e para as corporações, parece que não, né?

Somam-se as tragédias. Em geral entram outras questões: geralmente os mais atingidos são os mais pobres e vulneráveis, e aí isso termina não mobilizando os mais afortunados, privilegiados, os que estão no poder, e ficamos nessa situação.

OP - Se esses fenômenos extremos serão mais comuns, que estratégias de adaptação e de mitigação Fortaleza deveria adotar para evitar entrar em caos durante essas chuvas?

Alexandre - Do ponto de vista da adaptação a gente precisa reconhecer que mesmo que a gente freie o processo de aquecimento global, a gente tem que focar bastante energia na adaptação, com verbas inclusive. Desde sistemas de alertas, Defesa Civil bem mobilizada, todo esse processo numa ponta. E do ponto de vista estrutural, precisamos assegurar que as pessoas não estejam morando em área de risco.

É preciso rever a questão da impermeabilização na cidade. Nós temos uma cidade que é basicamente asfalto e concreto. Nós fizemos tudo que não era pra ter feito. Aterramos lagoas, houve ocupação da faixa de cheia das lagoas que restaram, praticamente eliminamos as áreas verdes da cidade e impermeabilizamos o solo. Então, de um lado, nós diminuímos o espaço para onde a água escoaria, e do outro impermeabilizamos o solo; então ao invés de a água infiltrar imediatamente, ela escoa e aí vai se acumular.

Isso requer, obviamente, medidas que são profundas. Precisamos reabilitar as lagoas, manter as áreas verdes que temos e, se possível, ampliar radicalmente a arborização urbana. Se possível, substituir o asfalto por solos permeáveis. E aí isso vai ter outras aplicações: nós precisamos, portanto, de uma cidade menos voltada para o carro e mais para o transporte público, principalmente sob trilhos (...), que ajudaria também a reduzir emissões de gases de efeito estufa.

E do ponto de vista da mitigação, é aquilo que estou sempre insistindo. (...) Não tem para onde correr, a gente precisa já estar com desmatamento zero. Precisamos ter uma agenda bem estruturada de planejamento de redução do uso de combustíveis fósseis, com data de encerramento de atividades de cada uma das usinas termelétricas. Com plano de eletrificação do transporte para reduzir a dependência de petróleo… E aí é aquela história, infelizmente há alguns anos a gente estava em um governo negacionista, anti-ciência, que o esporte predileto era incentivar o desmatamento adoidado.

Agora é um governo que tenta fazer o dever de casa, principalmente na questão do desmatamento. (...) Mas, do outro lado, esse governo tem uma agenda que é voltada para os combustíveis fósseis. Ou seja, nós temos um governo com uma posição ambígua. E isso não é suficiente, infelizmente.

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