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"Sou fruto de políticas públicas que deram certo"
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"Sou fruto de políticas públicas que deram certo"

Joyce Ramos, historiadora e militante dos direitos humanos, é a primeira quilombola a assumir o cargo de ouvidora-geral na Defensoria Pública
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A historiadora Joyce Ramos assumiu a ouvidoria externa da Defensoria Pública do Ceará em setembro de 2023 (Foto: Yuri Allen/Especial para O Povo)
Foto: Yuri Allen/Especial para O Povo A historiadora Joyce Ramos assumiu a ouvidoria externa da Defensoria Pública do Ceará em setembro de 2023

É da Serra do Evaristo, em Baturité, cidade quase 100 km distante de Fortaleza, que sai a professora Joyce Ramos. Militante de causas sociais desde a adolescência, principalmente da questão da moradia, a integrante do Movimento Brasil Popular tornou-se a primeira mulher quilombola a assumir o cargo de ouvidora externa da Defensoria Pública do Ceará (DPCE).

Graduada em História pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB), Joyce tem uma trajetória de luta no Movimento dos Sem Terra (MST), com atuação na defesa dos direitos dos assentados e assentadas da reforma agrária.

Em setembro de 2023, ela tomou posse do cargo na Defensoria, tendo recebido 55 votos das 84 entidades que participaram do processo eleitoral que foi o mais concorrido da história da entidade. A ouvidoria, de caráter externo, é o único órgão na estrutura da instituição com esse olhar. É também o único setor da entidade com incidência direta dos movimentos sociais, incluindo a esfera jurídica no Estado.

Aos 41 anos, Joyce é a quinta pessoa negra consecutiva a assumir o cargo criado em 2010, a quarta mulher e a primeira remanescente de comunidade quilombola no Brasil a ocupar esse espaço. Ao O POVO, Joyce relembra a infância na comunidade e fala como foi ter sido forjada nos movimentos sociais e na luta pelos direitos dos mais desassistidos.

OP - Como foi a sua infância?

Joyce Ramos - Eu sou de uma comunidade que recentemente foi reconhecida como uma comunidade remanescente de quilombo. Até então, durante toda a infância e juventude, nós não tínhamos essa informação. Mas já era uma comunidade historicamente muito envolvida com pautas sociais. Desde criança, sempre me envolvi em atividades da Igreja Católica. Na escola também sempre fui muito envolvida com projetos. A minha família é grande, tanto por parte de pai como por parte de mãe, tenho bastante tios e tias. Tive uma infância não muito fácil, pobre, fui criança de uma comunidade muito carente de serviços. E a minha família, como era muito pobre, eu não tive muito essa coisa de curtir a infância. A minha infância já foi muito na linha do trabalho, da responsabilidade. Muito cedo aprendi a ter esse senso de responsabilidade, de cuidar de casa, dos irmãos, mas sempre voltada para esses projetos (igreja e escola).

OP - Como é que foi esse caminho saindo da comunidade até aqui?

Joyce Ramos - Eu saí da comunidade aos 12 anos. A minha mãe foi contemplada num projeto social de moradia na cidade de Baturité, então baseado nisso a gente foi morar... Até porque na comunidade era uma vida bastante precária, então a minha mãe pode finalmente sonhar com uma casa própria. A gente se mudou pra cidade e, nessa comunidade, num bairro da cidade de Baturité, logo quando a gente chegou eu continuei envolvida em projetos (na igreja).

Nesse processo, duas tias minhas vêm para o MST, elas fizeram parte da fundação do MST no Ceará por volta dos anos 1990. E muito através delas comecei a ter essa visão de mundo mais ampla, digamos assim. Eu já era envolvida nesses pequenos projetos e ao acompanhá-las comecei a pensar: “Ora, eu quero ir para o Movimento Sem Terra também”. E antes mesmo de completar meus 15 anos de idade, pedi para uma delas me levar para o encontro estadual do MST que ia ter aqui em Fortaleza. Foi nesse encontro que eu me encantei pelo movimento e a partir daquele movimento resolvi então fazer parte da militância do MST. Aos poucos fui me envolvendo. Assim comecei a me envolver em atividades estaduais. Eu fui morar em Canindé, a princípio, como uma tarefa do MST. Passei um ano em Canindé no setor de Educação do MST e a partir disso fui me envolvendo em outros setores do MST. Então esse processo foi muito por influência das minhas tias.

OP - Você fala muito de políticas públicas. Qual é a importância disso na sua vida e na sua formação?

Joyce Ramos - Tem uma relevância absurda na minha vida porque eu sou fruto das políticas públicas. Tanto da moradia, desde quando a minha mãe é contemplada com programa de moradia, até mesmo através da conclusão do ensino médio e do ensino superior. Eu não contei, mas antes de fazer minha graduação, eu fiz o magistério que também foi numa turma contemplada pelo MST. Também na Paraíba. Engraçado porque foram turmas pioneiras. O curso de magistério também foi uma primeira turma que o MST abriu na Paraíba, em parceria com a Federal, no Colégio Vidal de Negreiros, um colégio agrícola. Então eu já tinha tido também essa experiência no ensino médio, na cidade de Bananeiras, na Paraíba.

Eu sou realmente o resultado de políticas públicas que deram certo. Sobretudo vindo de família humilde, de situação de precariedade social muito grande. Naquela época de meados dos anos 90 a situação do País não era das melhores por conta do contexto político que nós vivíamos. Então sou fruto das políticas públicas e a partir delas tomei consciência de classe, da necessidade de que a luta social deveria ser feita, porém buscando essas conquistas. Fazendo com que a luta se transformasse também em política pública.

OP - Levando em consideração a sua história, o que significa ocupar esse lugar hoje na Defensoria?

Joyce Ramos - Nossa, tem um significado grandioso porque eu já tenho mais de 20 anos de luta social, militante dos direitos humanos, então eu cheguei aqui graças à essa trajetória minha em defesa da luta das mulheres, em defesa da pauta da moradia, em defesa dos serviços básicos que até então a periferia tanto necessita. Hoje eu sou moradora da periferia aqui em Fortaleza e passei a ter uma militância muito forte também a partir desses serviços, como a luta por emprego, trabalho e renda, a luta por saneamento básico. Então, foi graças a essa trajetória de luta, de militância na perspectiva da garantia dos direitos humanos que eu… Eu não vim, eu fui chamada. Eu fui convocada a estar nesse espaço. Até então, a ouvidoria da Defensoria Pública não estava no meu horizonte. Foi um processo. As pessoas me trouxeram até aqui, os movimentos sociais me deram essa legitimidade. De dizer que o meu perfil, a minha luta, a minha história de vida são importantes para que eu esteja nesse espaço de legitimidade das lutas em defesa dos direitos humanos. Então estar aqui hoje é muito mais uma retribuição para com essas lutas e movimentos. Eu estou aqui como uma porta-voz desses sujeitos coletivos mas também como pessoa que vem das comunidades quilombola e periférica.

OP - Por que a ouvidoria é tão fundamental para uma entidade como a Defensoria Pública?

Joyce Ramos - É muito importante enfatizar que a Defensoria Pública é a única instituição do sistema de Justiça que tem uma ouvidoria geral externa. A Defensoria, como também é fruto das lutas, não seria a instituição que é hoje, voltada para a garantia dos direitos mais vulnerabilizados, se não fosse toda uma luta que culminou com a Constituição Federal de 88 e que, por sua vez, dentro do princípio do Estado Democrático de direito reconheceu a necessidade de ter essa instituição. Mas que era necessário também ter um órgão auxiliar que pudesse ser esse elo entre a sociedade civil e a instituição. Nessa perspectiva de aproximar a sociedade civil ainda mais da instituição, é que é criada a ouvidoria externa.

A ouvidoria vem justamente para dar legitimidade a essas pautas e a diversas manifestações que a sociedade civil tem e que se não fosse uma instituição como a Defensoria, talvez se perderiam. Porque essas manifestações que chegam à ouvidoria, graças a Defensoria, também podem se tornar políticas públicas, e se transformam à medida que é reconhecida a importância e a necessidade de tal serviço. Então, a Defensoria se fortalece na medida que a ouvidoria externa consegue se ampliar e ter esse conjunto de movimentos, de sujeitos mais diversos possíveis, fortalecendo a luta, mas também garantindo que a Defensoria esteja cada vez mais voltada a atender a essas necessidades.

OP - A senhora é a quinta pessoa negra consecutiva a ocupar esse cargo, a quarta mulher e a primeira quilombola. Tem um recorte social aqui. O que isso sinaliza?

Joyce Ramos - Eu ser a quarta mulher negra a estar nesse espaço é respeitar esse legado. É um reconhecimento da importância que é de não só mulheres, mas mulheres negras que historicamente são invisibilizadas, não têm a oportunidade de estar em estruturas e instâncias de poder. Muito me honra e faz com que a gente dê continuidade a esse legado. E principalmente por ser a primeira quilombola do Brasil a assumir o cargo de ouvidora pública. É uma responsabilidade, é um desafio que me coloca nessa posição. E principalmente uma alegria saber que mulheres negras e quilombolas estão ocupando esses espaços. E que cada vez mais portas se abram para que mulheres negras ocupam espaços de poder.

 

OP - Houve uma reunião de planejamento com movimentos sociais. Como foi esse encontro?

Joyce Ramos - É importante dizer que a Defensoria Pública vem de um histórico de mulheres também no comando da Defensoria Pública Geral, e são mulheres sensíveis à luta social e por justiça. Graças a esse empenho é que os movimentos sociais conseguem ter uma inserção dentro da Defensoria. No sentido de saber que as suas pautas serão ouvidas. Ultimamente nós tivemos a posse da dra. Samya Farias e ela assim como a dra. Elizabeth Chagas segue esse legado de dar continuidade a um projeto de Defensoria popular, que esteja voltada aos mais vulnerabilizados da sociedade, para sujeitos e sujeitas que enxergam na justiça algo totalmente distante da sua realidade.

É baseado nisso que os movimentos sociais encontram na defensoria a possibilidade de colocar na mesa suas pautas. Essa reunião foi muito fruto disso. Fruto de já enxergar a Defensoria Pública como essa instituição sensível às lutas e na perspectiva de fortalecer um projeto de Defensoria voltada às garantias dos direitos dos mais vulnerabilizados. Essa reunião foi para poder expor as demandas dos movimentos, que foram as mais diversas. Desde a pauta da moradia, aos direitos da juventudade, das mulheres. Como que a Defensoria pode pensar em cada vez implementar núcleos de enfrentamento às violências contra as mulheres, como a Defensoria pode fortalecer os territórios a partir do Defensoria em Movimento. Fazer com que a Defensoria vá até as pessoas que não têm oportunidade de chegar até aqui. E se colocar como colaboradores e fortalecedores dos projetos da Defensoria.

Nós estamos em processo de construção do Orçamento Participativo da Defensoria e é muito importante a presença dos movimentos. Porque sem os movimentos, sem a mobilização da sociedade, ele não avança. É justamente a sociedade que se mobiliza e propõe como deve ser a Defensoria Pública.

OP - Quais são os caminhos apontados a partir dessa reunião?

Joyce Ramos - Primeiro essa questão do Orçamento Participativo. O sucesso dele tem a ver com o engajamento das entidades, coletivos organizados. Parte dessa mobilização. Além de garantias do que a gente já construiu de projeto possa permanecer. O Defensoria em Movimento é uma conquista dessa reivindicação. O Defensoria em Movimento é a oportunidade que a gente tem de levar o atendimento jurídico da Defensoria a determinados territórios, especialmente que possuem grandes demandas e que têm essa dificuldade das pessoas chegarem até a instituição. A gente precisa agarrar com toda força essa conquista porque infelizmente ainda não temos número de defensores e defensoras capaz de atender às grandes demandas da sociedade. Nesse meio a gente precisa encontrar métodos para conseguir atender a população. A Defensoria em Movimento é uma grande conquista e um projeto que precisa continuar para que a população cada vez mais compreenda o papel da defensoria. Popularmente, é mais comum as pessoas enxergarem a Defensoria como a instituição que vai defender o seu parente em situação de cárcere. O advogado dos pobres. Então quando ela se depara com o núcleo de saúde, do consumidor, de defesa da mulher, passa a ter uma visão maior do que é a Defensoria a partir desses serviços prestados.

 

OP - A sua fala tem algo que vejo muito quando estou conversando com pessoas que são de luta, de movimentos, que parece que a conquista está sempre a um passo de nos escapar.

Joyce Ramos - O grau de desigualdades sociais que a sociedade tem tende a diminuir ou a crescer na medida que a gente tem uma conjuntura política favorável ou não, e a Defensoria não está fora desse contexto. O número de serviços que a Defensoria pode ampliar depende também de uma conjuntura política favorável a ela. O número de defensores, o crescimento parte de uma política que é: precisa ser feito um concurso público para que sejam nomeados novos defensores e defensoras. Mas para que tenha esse concurso público, é necessário também contar com o orçamento. E esse orçamento vai se dar a uma situação política que a gente tenha. De como é a relação da Defensoria com os demais órgãos do poder público. Tudo isso é uma combinação e isso serve muito também para a garantia dos direitos.

Tivemos recentemente uma realidade brasileira muito cruel que foi de aumento da fome, aumento do desemprego, além de uma pandemia que fez com que milhares e milhares, além do adoecimento, também perdesse o trabalho, a vida. Qual foi a retaguarda dada a essas pessoas? A Defensoria. É necessário que a gente tenha uma conjuntura política favorável pensando em não retroceder no que já foi conquistado historicamente. Tem até um ditado que diz que toda conquista só é válida se você souber defendê-la. Então, toda conquista da Defensoria, é necessário cada vez mais que os sujeitos coletivos defendam. É uma via de mão dupla. Ao mesmo tempo que esses sujeitos coletivos lutam para que tenha determinados serviços na Defensoria, esses serviços precisam ser fortalecidos para que não se perca.

OP - A senhora falou numa Defensoria popular e cada vez mais democrática. É uma forma de gestão compartilhada? O que isso significa?

Joyce Ramos - Importante essa pergunta porque aqui não é a Joyce Ramos. Além da minha ancestralidade que eu reafirmo o tempo todo, eu tenho um coletivo comigo. Uma retaguarda de movimentos. A gestão compartilhada é pensar desde um planejamento coletivo que nós fizemos recentemente, da ouvidoria com movimentos sociais, coletivos e entidades dos direitos humanos. Para mim, aqui não é simplesmente a voz da Joyce, mas é como esses movimentos querem que seja a ouvidoria. No sentido de que eu vou estar aqui no comando, mas eu não vou decidir nada sozinha. Eu vou ter sempre esses movimentos como uma espécie de conselho consultivo. Além de eu contar com uma equipe comigo hoje na ouvidoria e que essa equipe é que é responsável por dar conta de toda e qualquer demanda que chega, e que tem aumentado muito. Apesar de estar lá o nome da ouvidora Joyce Ramos, eu não trabalho sozinha.

OP - Como a senhora avalia esses primeiros meses de gestão?

Joyce Ramos - Muito dinâmico, mas também muito rico e desafiador. Porque até então, apesar de ser poucos meses, nós já conseguimos fazer uma atuação que contemplasse diversos sujeitos. Desde sentar com mães do sócio-educativo, até mesmo acompanhar pautas mais do Interior, a pauta LGBT, então de setembro pra cá a gente conseguiu ter uma dinâmica de trabalho grande. A tendência é aumentar porque na medida que faz esse planejamento coletivo, as pessoas vão querer cobrar que o que foi pro planejamento seja executado. Sentar, ter conversas bilaterais com diversos grupos, além dessas demandas mais individuais que vão chegando no dia a dia. Como o atendimento a um assistido que vem de outro núcleo porque não conseguiu ser atendido lá. É na Ouvidoria que ele busca essa resposta. Então, a ouvidoria tem que fazer esse recontato com o núcleo para garantir que o assistido possa ser agendado novamente. Além dessas demandas, a gente também tem que dar conta das agendas mais externas, desde processo por moradia, a questões mais ligadas a pessoas em situação de cárcere. Não é um papel pequeno. É muito complexo porque as pessoas buscam a sua mudança de vida, o seu direito garantido.

OP - Qual é a projeção que você faz daqui para frente?

Joyce Ramos - Nós temos quase dois anos pela frente ainda. Nesses dois anos quero muito fazer com que nós consigamos avançar na interiorização do Estado. Essa é uma das minhas principais metas, de garantir que a Defensoria Pública chegue aos mais diversos, mais longínquos territórios, sobretudo as comunidades quilombolas. Que é da onde eu vim e são comunidades historicamente muito mais vulnerabilizadas. A periferia é também um lugar muito de pouco acesso a direitos, mas quando se trata de comunidades quilombolas, comunidades tradicionais, o direito demora ainda mais a chegar lá.

A gente teve uma conquista agora que foi a posse dos novos 26 defensores e defensoras que foram justamente para o interior do Estado, mas é necessário ampliar mais ainda. Além disso, é garantir com que a gente tenha trabalhos ainda mais consolidados, nessa perspectiva de que ao invés da gente ter só uma carreta, que a gente tenha duas. Que o Defensoria em Movimento se amplie. E sobretudo que a gente consiga dar respostas a grandes problemas que nos chegam aqui, como essa questão do feminicídio no Ceará. Nós somos o estado que mais assassina mulheres. É uma realidade que a Defensoria não pode fechar os olhos. A gente precisa pensar como é que a gente evita o crescimento desse número.

A gente teve acompanhando mulheres trans e travestis em situação de cárcere. Como é que a gente pensa em dar soluções para aquela situação daquelas mulheres? Que antes do sistema prisional, muitas delas já não tinham direito nem mesmo à família? Não tinham direito ao nome? Então é desafio atrás de desafio. E a Defensoria Pública precisa enxergar esses problemas com um olhar mais profundo e, através do seu poder de articulação, possa trazer soluções. E a ouvidoria vai estar ali coladinha.

 

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