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Bárbara de Alencar e a professora que "descortina" a presença das mulheres na História
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Bárbara de Alencar e a professora que "descortina" a presença das mulheres na História

Raimundinha Feitosa, professora de Campos Sales, estuda há 20 anos a revolucionária e, passando a borracha em apagamentos, revela um passado de mulheres atuantes e corajosas
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Historiadora de Campos Sales estuda Bárbara de Alencar (Foto: Raimundinha Feitosa/Arquivo Pessoal)
Foto: Raimundinha Feitosa/Arquivo Pessoal Historiadora de Campos Sales estuda Bárbara de Alencar

Professora Raimundinha Feitosa fez as contas e percebeu que há exatos 20 anos estuda Bárbara de Alencar, líder revolucionária do Cariri. Interessou-se inicialmente pela ausência: passava os olhos nos livros de história da escola e não via mulher alguma. Bárbara, então, saltou-lhe os olhos — protagonista e sem medo. Surgiu na historiadora a necessidade de prover este mesmo sentimento aos outros.

Ainda que vire olhos ao termo “revolucionária” quando referido a ela mesma, Raimundinha abre cortinas e mostra que qualquer reflexo feminino na história veio acompanhado de um sacrifício das mulheres da época. São aquelas que, como afirma o médico austríaco Sigmund Freud (1856–1939) — o pai da psicanálise —, “devendo permanecer ocultas, acabaram se manifestando”. Ou, foram “manifestadas”, neste caso, por outra mulher.

Neste domingo, dia seguinte ao Dia Internacional da Mulher, Raimundinha lança um olhar sobre Bárbara Alencar, revolucionária de lutas pela instauração de uma República no Nordeste e participante da Confederação do Equador, tema de "Nordeste Insurgente", próximo documentário exclusivo do O POVO+. 

O POVO: O que a levou a iniciar os estudos sobre Bárbara de Alencar? Há quanto tempo a senhora se debruça sobre a vida dela?

Raimundinha: Na verdade, o meu desejo de escrever e pesquisar sobre Bárbara surgiu quando eu estava procurando um tema para a minha monografia da pós-graduação em História do Brasil. Fui levada pela curiosidade que trazia comigo desde criança, quando eu não encontrava a figura da mulher nos livros. Isso me acendeu o desejo de pesquisar sobre uma mulher.

Este aspecto é somado à proximidade de Bárbara de Alencar com o meu ambiente, uma vez que eu moro em Campos Sales e fiz faculdade no Crato. Fiz minha monografia em 2005 e estamos em 2025, então lá se vão 20 anos.

A minha pesquisa não é uma coisa grandiosa como eu gostaria de ter feito porque as fontes são muito escassas. As informações se repetem em cada obra, às vezes até com certa incoerência. Mas nós estamos na luta.

O POVO: A senhora vai publicar um livro agora, em parceria com o Sindicato dos Fazendários do Ceará (Sintaf). Sobre o que é e como será construído, levando em conta esse contexto de fatos repetidos?

Raimundinha: O título é “Bárbara de Alencar: a Presença Feminina nos Movimentos Revolucionários do Cariri”. Eu li os principais autores que escreveram sobre ela: Padre Antônio Gomes de Araújo, Irineu Pereira, J. de Figueiredo Filho, Ruth de Alencar. Todos com muita relação com o Cariri.

O POVO: O POVO+ está lançando um filme sobre a Confederação do Equador, chama-se “Nordeste Insurgente”. Nas pesquisas, identificamos a participação ou influência de quatro mulheres e dois grupos femininos. Uma participação rara, tanto que houve a expressão do Luíz Carlos, diretor da Sintaf, de que essa foi uma “revolução de homens”. O que a senhora acha dessa expressão?

Raimundinha: Essa expressão retrata o contexto daquela época. Onde as mulheres, por mais que elas fizessem alguma coisa, não eram retratadas. Não viam à tona os atos dela. Bárbara de Alencar é um exemplo de historiadores que, depois de quase 100 anos da morte dela, vieram se debruçar sobre a história dela. A gente sabe que houve essa participação, mas ela ainda continua sob o tapete.

O POVO: Em relação à participação da Bárbara. Alguns historiadores consideram que em 1817 ela foi protagonista, mas em 1824 os registros não existem. Qual a participação dela nessa Confederação?

Raimundinha: Eu considero a Confederação do Equador uma continuação da revolução de 1817 (Revolução do Crato). Aliás, os objetivos eram os mesmos: tornar o Brasil ou, pelo menos, o Nordeste, uma República. A insatisfação que reinava contra o poder monárquico, que apesar da independência continuava existindo, era o imperador que estava lá.

E em 1817, principalmente no Cariri, a figura mais perseguida foi Bárbara de Alencar. Pereira Filgueiras (depois aliado da família em 1824) caçava Bárbara como a chefe visível da revolução. Então, tendo esse fato, eu trago para a Confederação do Equador.

Bárbara de Alencar plantou nos filhos o espírito político. Ela não se esquivou em nenhum momento de participar das reuniões em Fortaleza quando eles traçaram os planos. Ela estava lá abrindo as portas da casa para a juventude entusiasta de Fortaleza.

E, por fim, ela continuou sendo perseguida. Tanto é que, quando morreu, teve de fugir e estava refugiada. Ela fugiu da contrarrevolução, do movimento que houve contra a revolução do Equador. Ela ficava distante, o meio de comunicação era muito difícil, mas ela recebia as notícias. Acompanhava tudo, apesar das informações chegarem a conta-gotas.

Eu, por tudo isso, vejo Bárbara de Alencar com uma participação na Confederação do Equador. Ela não tava à frente das batalhas, mas ela tava nos bastidores.

O POVO: Tivemos acesso à aparição de outras mulheres no Diário do Governo, primeiro jornal do Ceará. Elas colocavam, inclusive, os nomes. Além disso, Ana Triste viajava o Interior, mandando cartas. Parecem coisas muito pequenas, mas se a gente for olhar no contexto, talvez não sejam. Qual o impacto da participação dessas mulheres, levando em consideração o papel que era esperado delas na época?

Raimundinha: Para as mulheres daquela época, os direitos não existiam. A mulher não tinha direito a nada, só de casar, criar os filhos, cuidar desses filhos do marido e às vezes até dos filhos do marido fora do casamento. Era isso que se esperava.

Sempre lembro disso e costumo citar uma frase do Padre Antônio Vieira. Quando ele disse que naquela época “às mulheres deviam ser dadas três oportunidades de sair de casa: no batismo, no casamento e no sepultamento”. Às mulheres era dado o direito de olhar o movimento por trás das grades das janelas de suas casas, das cortinas.

Bárbara de Alencar quebrou isso quando, primeiro, ela desafiou os pais e casou com quem queria. Desafiou quando não satisfeita com a Vila do Crato, foi para Fazenda Pau Seco. E lá, ela liderou. Ela que cuidava de plantação, era ela que cuidava de viveiro. Ela conseguiu transformar a fazenda na melhor da região. Construiu na cidade do Crato a primeira casa de tijolos. Ela tem uma visão muito além de seu tempo.

O POVO: E ela não foi a única. Tanto ela quanto outras mulheres se destacaram na Confederação, apesar dessas características da época. A senhora considera que isso vem de algum tipo de natureza da mulher cearense? De onde surge essa atitude?

Raimundinha: Sinceramente, eu não saberia te responder. É uma coisa que a gente sabe que a mulher nordestina é guerreira. A mulher nordestina é corajosa, é ousada. Não sei se essa característica faz parte do contexto geográfico ou racial, sinceramente eu não sei. Eu não saberia te responder.

Mas, há muitas outras. Eu tive muita vontade de escrever sobre Jovita Feitosa, porque por sinal é uma uma parente minha, já que temos o mesmo sobrenome [risos]. Mas ela também foi uma pessoa que se destacou na história. De Jovita Feitosa, eu saberia até dizer porque os Feitosas realmente são, né, muito corajosos. Mas essa questão das razões, não sei. Isso merece um estudo grande!

O POVO: E como considera o tratamento histórico dado a essas mulheres?

Raimundinha: No meu novo livro, o primeiro capítulo chama-se “A mulher na historiografia brasileira”. Olhe, na faculdade é que eu vim entender porque a mulher não aparecia na história.

Não aparece devido às barreiras do positivismo, nas quais só podiam ser registrado fatos se houvesse atos heróicos. E como à mulher não era dado o direito nem de sair de casa, então o que ela fizesse era prontamente apagado.

Só a partir do movimento feminista dos anos 1960, principalmente, que começaram a surgir estudos realmente fundamentados e valiosos sobre elas. Mas, a história apagou a figura da mulher propositadamente, porque era um “ser inferior”. Era uma “mercadoria”. Você comprava e era sua.

O POVO: A senhora considera que está havendo uma mudança na representação da mulher pela história?

Raimundinha: Há 200 anos, a mulher não tinha o direito sequer de aprender a ler. De trabalhar fora, jamais. Eu acho que muita coisa ainda precisa ser feita, a barreira imposta pelo machismo no Brasil ainda existe. Mas nós já andamos significativamente.

E esse caminho influenciou a historiografia em relação ao resgate feminino na história. Hoje a gente tem estudos maravilhosos sobre a mulher. Porque a mulher acordou. Quer dizer, ainda está com sono, não acordou completamente. Mas o suficiente ela acordou.

A importância desse resgate histórico é muito grande, porque mostra que apesar de toda a cortina que foi criada para ocultar os fatos em que as mulheres participaram, elas conseguiram, embora de forma pontual, romper essa cortina.

O que falta, eu acho, são pessoas interessadas em fazer esse resgate. Pessoas que se debrucem. Apesar de que as fontes sejam muito raras mesmo, muito poucas. Fica difícil. Mas, precisa que alguém faça isso.

O POVO: E a senhora é uma das pessoas que está fazendo isso. Isso também é um tipo de revolução?

Raimundinha: Eu não sei se eu sou revolucionária, não. Eu diria que eu sou uma pessoa que gosta das coisas difíceis. E acho que vale a pena, porque histórias desse tipo precisam ser divulgadas para que essa geração que está aí tenha um conhecimento disso. Então, meu desejo é esse, passar para gerações presentes esses fatos.

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