Kyra Gracie sobe ao palco, respira fundo e acena sorridente. A pentacampeã mundial de jiu-jitsu pede para que a pequena multidão, formada prioritariamente por mulheres, se aproxime dela e começa. Por 50 minutos, com certo magnetismo e a desenvoltura de quem está nos tatames desde os 11 anos, sob a luz da família mais importante e tradicional do esporte, ela entabula uma sequência afiada de técnicas e dicas de defesa pessoal feminina.
Para todas ali, o discurso fala sobre empoderamento e autoconfiança. Para ouvidos mais treinados, os ensinamentos da arte suave - de controle mental, lidar com a pressão, buscar saídas e prezar pela técnica mesmo quando o oponente é maior - vão sendo propagados com um objetivo: ajudar com que mulheres se protejam.
A primeira mulher da família Gracie a conquistar a faixa preta, a lutadora carioca virou empresária, palestrante, esposa e mãe de três crianças. Na passagem por Fortaleza, quando participou da programação do 12º Circuito de Corridas Pague Menos, Kyra falou ao O POVO sobre família, trajetória e o incentivo que vem emprendendo de fazer com que mulheres lutem.
O POVO - Em algumas ocasiões, você falou que o fato de ser mulher e querer lutar não era visto com bons olhos dentro da tua família. Qual foi o ponto virada disso? E como foi para você seguir neste caminho mesmo sem apoio?
Kyra Gracie - Eu cresci com os homens da minha família indo pro lado do jiu-jitsu e as mulheres não tinham essa opção, não era incentivada, era um cenário muito machista na época na sociedade como um todo. Minha família era um reflexo da sociedade e com isso as mulheres não seguiam adiante, não só no jiu-jitsu, mas em todas as outras áreas. E aí, o ponto de virada para mim foi quando eu vi minha mãe treinando, aprendendo jiu-jitsu, ela chegou a faixa azul - que é a segunda faixa que você recebe no jiu-jitsu, você começa na branca, azul, roxa, marrom e preto. E, com isso, eu me inspirei, ao ver minha mãe no tatame eu falei: "Opa, eu também posso?". E aí, comecei essa minha trajetória e foi maravilhoso. E depois a minha família começou a olhar diferente para as mulheres e ver que existia um caminho que elas poderiam seguir. Hoje, já colocam mais as filhas, já tem outras mulheres da família Gracie que conquistaram a faixa preta.
OP - Falando em família, os Gracie têm alguma ligação com o Ceará. O terreno que hoje é o Palácio da Abolição, inclusive, era da tua família, do teu bisavô. Você sabe um pouco dessas histórias e esses laços ainda permanecem de alguma forma?
Kyra - Eu sei sim, meu avô adorava o Ceará. Ele falava com muito carinho aqui da Cidade, falava com boas memórias sobre tudo que ele viveu aqui. E eu levo esse laço com o carinho que eu tenho pelas pessoas daqui, o carinho que eu recebo nas redes sociais, em todos os lugares que eu vou. Eu já vim várias vezes pra Fortaleza, venho com as crianças, elas adoram ficar aqui e ir pra praia. Então, a conexão entre o Ceará e a família Gracie permanece aí em várias gerações.
OP - Ter o peso do teu sobrenome, seguindo a carreira que você seguiu, te abriu mais portas do que fechou? Quais os prós e os contras?
Kyra - Com certeza, abriu muitas portas. Ao mesmo tempo você tem mais responsabilidade por conta de ter um sobrenome que tem tradição dentro do jiu-jitsu, dentro das artes marciais. Mas eu fui aprendendo a lidar com pressão desde que eu sou pequena e eu lido bem com a pressão. Na verdade, eu melhoro com a pressão. E, provavelmente, foi porque eu fui moldando isso ao longo da minha vida. Então assim, acho que são poucos contras. O contra é mais sobre a expectativa de outras pessoas em relação ao sobrenome, você ter que buscar sempre uma boa performance, para representar. Mas eu não via isso como um fardo, eu via isso mais como uma responsabilidade e uma missão que eu tenho na minha vida. Então, são só coisas boas.
OP - O universo do jiu-jitsu de forma específica, mas da luta e dos esportes como um todo, ainda é muito masculino. Você vê alguma evolução? As meninas que querem enveredar por aí enfrentam ainda muito preconceito?
Kyra - Sim, é muito masculino e grande parte dos espaços aceitam as mulheres, mas não celebram as mulheres. Então, as mulheres são toleradas e não celebradas. E isso é um ponto ruim, porque vem de muitas gerações e vai passando de um para outro. Mas existem pessoas e espaços que estão abrindo a cabeça e esses espaços estão indo muito bem, tendo muitos alunos, muitas alunas inseridas. Quando tem acolhimento, as mulheres conseguem se inserir nesse meio. Agora, se continuar com os mesmos pensamentos e as mesmas atitudes antigas, isso só vai afastar as mulheres do espaço. As mulheres enfrentam muito preconceito, sim. As mulheres ainda lutam num horário que não é o horário principal; as mulheres ainda sofrem com a falta de visibilidade - e não só a falta de visibilidade, mas falta de apoio também dentro da comunidade, dentro dos espaços, dos campeonatos. E isso precisa melhorar urgentemente.
OP - Conversando com algumas mulheres que praticam artes marciais, ouvi relatos de que algumas sentiram certo receio de procurarem uma academia e uma arte em que elas se sentissem bem e acolhidas. Como uma mulher pode identificar que um espaço, um dojo, um mestre, são seguros e inclusivos para ela?
Kyra - Esse é um ponto crucial. Antes de entrar em qualquer espaço de luta, você tem que saber quem é esse professor, você tem que saber qual a metodologia que ele usa, pegar referências. Uma dica que eu dou é entrar no site da WJJC (https://wjjc.io/ ), que é uma certificadora internacional em blockchain (como um livro-razão digital compartilhado e seguro). Ela certifica o diploma de faixa preta dos professores apenas quando eles têm todo o histórico criminal verificado e todo o histórico como professor - se tem curso de professores, se o mestre dele realmente é o responsável pela faixa preta e se tem algum antecedente criminal. Então, assim, quando eu vou contratar meus professores, eu checo nesse lugar, que é a WJJC.
OP - Um dos cursos que está no teu escopo de ação é o de defesa pessoal feminina. Para além das técnicas, que ensinamentos você compartilha e o que você objetiva com esse curso?
Kyra - A defesa pessoal feminina vai muito além da técnica: é a mulher descobrir a sua força interior, é descobrir que ela é capaz de se defender, capaz de falar "não", capaz de se colocar numa reunião, num relacionamento, ter postura para falar, se antecipar… E isso tudo cria a autoconfiança. Então, a partir do momento que você sabe que você sabe se defender, você já começa a ter outras atitudes perante a vida, você muda a sua postura, você muda a forma como as pessoas te veem, porque é uma linguagem não verbal. E isso tudo é adquirido através da coragem, através da autoconfiança e da autoestima que é trabalhada dentro das aulas de luta.
OP - Qual a importância de uma mulher praticar alguma luta?
Kyra - É de total importância, porque é sobre preservar a sua integridade física e mental. A gente vê os números de violência, de feminicídio. No Brasil, a cada dois minutos uma mulher é agredida (conforme dados de violência doméstica do Anuário de Segurança Pública 2020. O mesmo anuário, com número atualizados de 2024, aponta que três a cada dez brasileiras já sofreram violência doméstica e que a cada 30 segundos uma mulher é vítima de algum tipo de violência). A gente não pode deixar as nossas mulheres vulneráveis, as nossas filhas vulneráveis. Que elas saibam, sim, se posicionar, que elas saibam, sim, se defender, porque isso muda toda a nossa postura, a forma de falar, de olhar nos olhos. Eu começo a ter dentro de mim mais coragem para seguir a minha vida e andar com confiança e consciência. No Brasil, a gente precisa estar mais atentas ainda.
Defesa
Ficar no banco atrás do motorista, gritar "Fogo" quando estiver em perigo e em um ambiente confinado, manter um perímetro de distância de um possível agressor, e técnicas de escape. Essas foram algumas das dicas que Kyra reuniu em vídeo para os seguidores do O POVO no Instagram. Para assistir, acesse: https://tinyurl.com/257p6mhr
Pause
No programa Pause, atração comandada pelo jornalista e colunista do O POVO Clóvis Holanda, Kyra falou sobre a banalização da prática de doping no jiu-jitsu e sobre as falhas estruturais das federações, que acarretam na falta de apoio aos atletas. Para assistir, acesse:
https://tinyurl.com/yc2npr38