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"A Indonésia é um país negligente", diz montanhista cearense
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"A Indonésia é um país negligente", diz montanhista cearense

Rosier Alexandre, montanhista cearense com experiência em expedições arriscadas, analisa erros que podem ter contribuído para a morte de Juliana Marins
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Rosier Alexandre, montanhista cearense  (Foto: FÁBIO LIMA)
Foto: FÁBIO LIMA Rosier Alexandre, montanhista cearense

O Brasil segue enlutado pela morte de Juliana Marins, brasileira de 26 anos que veio a óbito na última semana após cair do Monte Rinjani, segundo vulcão mais alto da Indonésia, durante uma trilha. Caso, de repercussão internacional, acendeu um debate sobre falhas nos padrões de segurança adotados pelo país asiático e levantou um alerta a respeito do turismo de aventura que se pratica na região.

Autoridades indonésias estimam que jovem tenha morrido vinte minutos depois do acidente, devido a ferimentos na caixa torácica e nas costas. Contudo, o corpo dela esperou quatro dias por resgate, período de completa angústia para familiares e amigos. Tanto o atraso da remoção como ações que antecederam a queda, como o próprio comportamento do guia, foram alvos de críticas de especialistas pelo mundo.

Em conversa com O POVO, o montanhista cearense Rosier Alexandre, que tem quase duas décadas de experiência em expedições arriscadas e que já se aventurou na Indonésia, faz uma análise dos erros que podem ter levado à tragédia. Ele acusa o governo do país de negligente e indica um despreparo de autoridades locais, apontando que acidente foi provocado por uma "conjunção de fatores".

O POVO - Que tipo de preparo é preciso ter para subir o Monte Rinjani?

Rosier Alexandre: Pela exposição a altitude, precisa estar com uma saúde 100%, precisa ter ótimo condicionamento físico. É recomendado que tenha experiências anteriores em longas caminhadas em altas montanhas. O Monte Rinjani tem 3.726 metros de altitude, no seu cume temos aproximadamente 65% do oxigênio que dispomos no nível do mar, este déficit de 35% de oxigênio tem várias consequências: o caminhante corre risco de tonturas, cansaço extremo, desorientação e até perda da capacidade cognitiva e com isso as chances de acidente vão aumentando.

OP- Como é o percurso do vulcão? Quais são as principais dificuldades que trilheiros podem encontrar no caminho?

Rosier - É uma longa caminhada de altitude. A depender do condicionamento e experiência do caminhante pode levar de dois a quatro dias de caminhadas expostas a condições climáticas que podem ser severas. A altitude é a primeira dificuldade, depois o tipo de terreno inclinado e com muitas pedras soltas que torna o percurso escorregadio e perigoso, ainda existem passagens estreitas e muitos desfiladeiros com riscos de queda, e por fim as condições climáticas que mudam repentinamente.

OP - Você já chegou a subir montanhas na Indonésia. Como atividades como essas são vistas no país? Existe uma fiscalização da parte do governo ou sente que há uma negligência quanto a isso?

Rosier - Já escalei sim na Indonésia, lá eu escalei o Carstensz, uma montanha de 4.884 metros de altitude, é a maior montanha da Indonésia e também é a maior montanha da Oceania. Nem na sua maior montanha o governo indonésio fiscaliza nada. O governo se limita a cobrar taxas de visitação, sem oferecer qualquer suporte, nem mesmo informações que possam subsidiar um bom planejamento. Em se tratando de turismo de aventura, a Indonésia é um país negligente, não tem um plano de gerenciamento de riscos e nem equipes de busca e salvamento.

Na Indonésia, muitos que atuam como guias não têm nenhuma formação, são pessoas que têm limitações de comunicação e praticamente apenas ensinam o caminho. Outro fator preocupante é que as agências são inconsequentes, agem na ânsia de vender seus pacotes e simplificam tudo forçando uma venda de um produto que envolve riscos altos enquanto seus clientes são meros viajantes sem equipamentos e nem experiência para tal aventura. Eles não saíram de seus países preparados para uma expedição, eles tomam a decisão na hora influenciados por outros viajantes tão inexperientes quanto eles.

Todos os países que se propõem a vender turismo de aventura, devem regulamentar as atividades, fiscalizar e dar suporte antes, durante e até depois das expedições ou caminhadas. Precisam ter um plano de gestão dos riscos, qualificarem equipes de busca e salvamento, disponibilizar equipamentos em todo o percurso onde ocorre a atividade. O que vimos agora foi um desastre por parte do governo. Enquanto Juliana já estava no quarto dia sem resgate, o parque continuava aberto com filas de pessoas pagando ingressos e entrando no parque, uma atitude de desrespeito com os clientes e com a própria vida de uma cliente que estava no quarto dia a espera de um resgate que infelizmente não ocorreu a tempo de salvá-la.

OP - No caso da Juliana, a família relatou que ela chegou a ser abandonada pelo guia antes de cair. Acredita que a atitude do profissional pode ter contribuído para a tragédia? Enxerga um despreparo ai?

Rosier - Com certeza isso contribuiu com o acidente. Em nenhuma situação, o guia deve deixar clientes para trás. No caso da Juliana, há relatos de que ela havia demonstrado cansaço, isso chama mais atenção e aumenta o risco. Foi um completo despreparo por parte do governo e por parte da empresa operadora.

OP - Depois da queda ela ficou quatro dias esperando por resgate. As condições climáticas e o terreno íngreme podem realmente ter dificultado o resgate ou enxerga que houve omissão?

Rosier - As condições climáticas até poderiam dificultar um pouco, porém o que vimos foi um festival de descompromisso do governo e da empresa que opera na montanha. Até o resgate do corpo foi feito por voluntários, isso mostra a falta de comprometimento do governo. Os resgatistas falaram da falta e da demora para chegar os equipamentos, quando chegaram eram precários e insuficientes. Em vários relatos foi citado que as cordas eram curtas, um equipamento básico para a atividade de montanhismo e resgate.

OP - Em casos assim, o quanto a agilidade no resgate pode ser fundamental para salvar vidas?

Rosier - Em uma montanha de 3.726 metros de altitude, durante o dia a temperatura pode passar de 30 graus Celsius e a noite cair a menos de 10 graus Celsius, o risco de uma única noite desprotegida já pode tirar a vida de alguém, logo, cada hora é muito tempo. A Juliana foi vista de calça jeans e tênis, existe essa imagem dela. Na hora da queda ela não tinha roupas adequadas para passar uma noite ar relento. O resgate foi muito lento, denotando o despreparo do país para este tipo de atividade.

OP - Você chegou a enfrentar acidentes como montanhista, alguns deles no Everest. Existe uma orientação do que fazer quando se enfrenta imprevistos do tipo?

Rosier - Sim, já enfrentei algumas tragédias, inclusive já fiquei preso na montanha por três dias, isso foi no Everest. Mas eu tinha um bom planejamento prévio, tinha equipamentos de sobrevivência e comida.

Existe um protocolo de segurança que inclui procedimentos que são universais e outros que são específicos de cada montanha. Já visitei e escalei em todos os continentes e em muitos países, em alguns lugares o governo local dá um excelente suporte antes de iniciar uma expedição orientando sobre todos os riscos envolvidos na operação e os procedimentos a serem seguidos, e em outros, apenas se preocupam em te cobrar uma licença, e isso é tudo.

Quando falamos de segurança existem várias camadas (...) O governo local é o primeiro e tem um papel fundamental em orientar e dar suporte, se ele fracassar, o cliente tem uma segunda chance de estar bem amparado através da contratação de uma empresa experiente que pode compensar a deficiência do governo. E por último, o próprio cliente deve ter expertise para avaliar o que vai fazer, estudar os riscos envolvidos, se preparar bem e avaliar a reputação da empresa que vai contratar e buscar se autoproteger. Um acidente nunca é apenas a falha de um lado, é uma conjunção de fatores que foram negligenciados.

OP - Como essa tragédia no vulcão vai impactar atividades de turismo e exploração? Acredita que questões de segurança serão mais debatidas e implementadas a partir de agora?

Rosier - O mundo acompanhou esta tragédia, países e empresas que já seguiam um rigoroso protocolo de segurança vão ficar ainda mais atentas, porém, pelo que conheci dos indonésios, tenho poucas expectativas que isso vá gerar grandes mudanças por lá. Mas torço muito que eles aprendam e implementem um Sistema de Gestão da Segurança em todas as suas montanhas, e que isso vire política pública e que as empresas locais desenvolvam uma cultura de segurança, corrijam seus erros e evitem novas tragédias.

 

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