Sob o sol ardente do Ceará, em uma barraca à beira-mar, garçons e cumins correm de um lado para o outro atendendo às famílias que foram à praia no fim de semana. São as mesmas cenas de qualquer sábado: pais gritam ao mar para chamar os filhos, avisar que a batata chegou, garçons levam peixes fritos com baião para as mesas e, aos 8 anos, uma criança retira e limpa o que foi deixado, abrindo espaço para novos clientes.
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“Uma chaga social secular”. É assim que Felipe Caetano, 23, se refere à realidade do trabalho infantil, que ele conhece intimamente. Cearense do município de Aquiraz, na Região Metropolitana de Fortaleza, ele começou a trabalhar como garçom aos 8 anos.
Entre os 8 e os 14 anos, foi catador de latinhas e trabalhou com aluguel de pranchas de surfe. Filho mais velho de uma família empobrecida, carrega no sangue a marca do trabalho precoce — um legado que assumiu como missão de vida combater.
Caetano contou sua história ao O POVO uma semana após o lançamento de seu livro, uma versão expandida da monografia que apresentou ao curso de Direito na Universidade Federal do Ceará (UFC). A pesquisa conversa com a sua história: “O trabalho infantil na jurisprudência dos tribunais superiores”, e tem prefâcio escrito pela ministra cearense Kátia Magalhães Arruda, do Tribunal Superior do Trabalho.
A graduação em Direito, porém, é apenas mais um capítulo de sua militância pelos direitos das crianças. Como ativista, Felipe já percorreu o Nordeste construindo uma rede de conscientização sobre o trabalho infantil, em parceria com a Organização das Nações Unidas (ONU) e o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef). Para o futuro, ele determina uma meta principal: tornar-se procurador do trabalho. Confira entrevista:
O POVO - De que forma o trabalho infantil marcou sua infância e influenciou sua trajetória?
Felipe Caetano - O trabalho infantil é algo muito presente na minha comunidade, posso até dizer que é um uma questão cultural. Meus avós foram trabalhadores infantis, minha mãe foi trabalhadora infantil doméstica, eu fui trabalhador infantil e a consequência lógica é que os meus filhos, os meus netos também fossem, porque eu venho de uma comunidade onde pouquíssimas pessoas conseguiam ter acesso à educação formal.
Então, desde os meus 8 anos de idade, eu fui incentivado a trabalhar. Eu já trabalhei como catador de garrafas plásticas para vender, já trabalhei alugando pranchas de surf, bodyboard e também, a principal atividade que eu exercia era como garçom. Dos meus 8 aos 14 anos de idade, todo sábado, domingo e feriado eu estava nas barcas de praia, porque eu tinha a obrigação de levar alguma coisa para dentro de casa.
Eu não me lembro de um fim de semana na minha infância que não seja trabalhando. Todas as lembranças que tenho da infância são trabalhando, aquela era a minha realidade. A maioria dos meus amigos também fazia as mesmas coisas e eu achava que aquilo era o ciclo natural da vida: que eu nascia, que eu ia crescer e que eu ia ser um garçom para o resto da minha vida.
O POVO - O que mudou na sua vida para sair dessa situação de violação de direitos?
Felipe Caetano - Participar de projetos dentro da minha escola. Quando eu estava no 8º ano, fui convidado para uma conferência do selo Unicef no meu município. E a partir dessa conferência, eu tive contato com o que eles chamavam de Nuca, o Núcleo de Cidadania dos Adolescentes.
Esse Nuca era justamente um aglomerado de adolescentes que falava de temas como saúde sexual, direito à educação, direito à participação. Ali eu já me reconhecia como um defensor dos direitos das crianças, só que eu ainda não percebia que eu, como um adolescente, estava com os meus direitos sendo violados.
E uma dessas oficinas foi sobre trabalho infantil. Lá eu conheci o Dr. Antônio de Oliveira Lima, que é procurador do Ministério Público do Trabalho. E nessa oficina foi explicado o que é o trabalho infantil e quais são os prejuízos que ele causa na vida da criança e do adolescente. E naquele momento eu disse: "Eu tô em situação de trabalho infantil". Eu tô aqui falando sobre outros direitos das crianças, mas eu tô com os meus próprios direitos sendo violados todo sábado e todo domingo, na Barraca de Praia.
Então, a partir disso, eu inicio um um movimento de autolibertação dentro de casa, que era justamente convencer a minha família que eu tinha que deixar de trabalhar.
O POVO - Como sua família, que já tinha naturalizado e enraizado o trabalho como algo natural da infância, reagiu a esse movimento?
Felipe Caetano - Foi um período complicado, porque veja, um adolescente de 14 anos de idade, recém-saído da infância, que contribuía dentro de casa, tava dizendo para a mãe e para o padrasto que não queria mais trabalhar porque queria ser procurador do trabalho, queria ser doutor. Foi uma coisa que para eles deve ter sido muito chocante, porque aquilo não era comum.
Eu tive muita resistência dentro de casa. A minha mãe acreditava que eu estava deixando de trabalhar para virar um vagabundo, um bandido. Meu padrasto também não apoiava e o resto dos meus familiares achavam, "ah, ele não quer trabalhar, então ele não vai ser nada na vida". Eles achavam que o adulto que eu seria estava necessariamente vinculado àquela espécie de trabalho que eu executava na infância.
O POVO - E em que momento essa visão começa a mudar na sua comunidade e para a sua família?
Felipe Caetano - Quando eu começo a de fato ter uma uma projeção nessa luta, as pessoas já começam a olhar com outros olhos, a perceber: "Não é um menino de 16 anos que sai por aí postando qualquer coisa. É uma pessoa que tem respaldo de instituições como o Unicef e o Ministério Público do Trabalho".
E a minha mãe começa a perceber isso. Quando a minha mãe, semi-analfabeta que só fez até o 4º ano do ensino fundamental, vê o filho dela ingressando na UFC, no curso de Direito, ela começa a perceber que o mundo não era só aquilo que ela acreditava. A realidade é muito maior do que os olhos dela.
Nesses momentos, a minha família como um todo começa a perceber que eu poderia ir muito além do que eles já tinham sonhado para mim. Porque nunca eles tinham me sonhado médico, nunca tinham me sonhado advogado, juiz, engenheiro, nunca tinham me sonhado nada.
Mas eu não falo isso com rancor, com nenhum mal sentimento, porque eu sei que eles também foram impedidos de sonhar. Algumas pessoas crescem revoltadas, colocam a culpa nos pais, mas eu não tenho como colocar a culpa na minha mãe. Ela também foi uma vítima dessa engrenagem que quer perpetuar pretos, pobres e favelados no ciclo da pobreza e no ciclo da miséria.
O POVO - Falando agora um pouco da Faculdade de Direito. Você vinha de uma situação de vulnerabilidade social e entrou em um espaço totalmente discrepante. Você sentiu essa distância entre sua vivência e a dos seus colegas, foi algo que gerou desconforto?
Felipe Caetano - Eu acho que a síndrome do impostor foi a coisa que mais me acompanhou durante a graduação [fala rindo]. Logo nos primeiros dias, eu pensei: 'Meu Deus, eu não mereço estar aqui'. É uma coisa que vai acompanhando a gente, até mesmo hoje, no Tribunal de Justiça [onde Felipe é concursado], tem horas que eu penso: 'Eu não mereço estar aqui, outra pessoa merecia o meu lugar'. Isso é porque a gente vem de uma crença muito limitadora de achar que a gente não tem direitos, não tem oportunidade, não merece estar nesses lugares.
E aí quando você chega em um curso que, apesar das cotas, ainda é muito elitista, são realidades completamente diferentes, porque muitas pessoas não tem noção das problemáticas sociais. Eu lembro que teve uma uma intervenção que eu fiz falando de trabalho infantil, a colega olhou para mim e disse: 'Meu Deus, ainda existe trabalho infantil em 2021?'. Eu respondi: 'Fulana, desce a escada que aqui na frente tem três crianças dormindo na calçada da faculdade de Direito'.
O POVO - Antes mesmo de se formar em Direito, você já havia sido homenageado no aniversário do Unicef, atuado como conselheiro jovem da organização no Brasil, discursado na ONU e visitado a maioria dos estados do Nordeste para construir uma rede de conscientização sobre o trabalho infantil. Em meio a tudo isso, você notava algum impacto da sua militância na vida de outras crianças?
Felipe Caetano - Eu sempre achei que eu tava fazendo o mínimo, porque eram duas realidades completamente distintas. Eu acabava de sair de uma palestra em Nova York, rodeada de embaixadores, e assim que eu chegava na minha comunidade, eu tinha que passar por duas crianças trabalhando em barraca de praia. Tudo isso me fazia questionar como é que eu poderia fazer mais para essas crianças e esses adolescentes que vivem, inclusive, muito perto de mim.
Eu sempre me questionava como a minha atuação poderia ser mais efetiva. Se era criando comitês, fazendo denúncias, fazendo mobilização com o Conselho Tutelar, eu sempre me questionava se de fato o meu ativismo fazia alguma diferença.
Mas eu comecei a perceber que de fato estava havendo uma mudança quando o sistema de garantia de direitos do estado do Ceará já não tratava mais a questão da participação de crianças e adolescentes como algo decorativo. Todos os eventos hoje que tratam de trabalho infantil, pode ter certeza que vai ter uma criança ou adolescente participando, falando ativamente do combate ao trabalho infantil. A gente, aqui no Ceará, foi o Estado que mais reduziu o trabalho infantil no País na última década. E tudo isso foi graças a uma soma de esforços, seja, por parte das ações diretas do Ministério Público do Trabalho, seja por parte das campanhas, das ações de conscientização.
Então chegou o momento que os nossos comitês estavam em dezenas de municípios do Estado. E foi quando eu vi que os meninos estavam realmente participando, cobrando e levando essas pautas para dentro da escola, que eu disse: 'Não, a gente tá fazendo alguma diferença sim'.
O POVO - Agora passando para falar um pouco mais sobre o livro, o que você destacaria da jurisprudência dos nossos tribunais superiores sobre esse tema?
Felipe Caetano - Bom, primeiro que cada um dos três tribunais tem competências diferentes na análise do trabalho infantil. O TST faz uma análise do direito do trabalho, o STJ faz uma análise da questão previdenciária e o Supremo Tribunal Federal vem ali trazer uma análise mais constitucional do trabalho infantil.
Só que o que eu consegui notar nessas pesquisas é que a jurisprudência dos três tribunais, apesar das competências diferentes, estão alinhadas em entender que apesar da proibição constitucional do trabalho infantil, a regra proibitiva não pode ser analisada, vista ou interpretada de forma a prejudicar as crianças e os adolescentes.
O STF, por exemplo, tem jurisprudência reconhecendo que adolescente em situação de trabalho infantil tem direito a licença maternidade. O STJ já reconhece, por exemplo, direitos previdenciários. O menino trabalhou na infância, hoje já é um senhor de idade, mas não tem tempo de contribuição previdenciária. E aí o STJ vem dizer, "aquele tempo de trabalho infantil pode ser computado".
São formas que o Direito encontra justamente de atenuar a violação já sofrida.