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Gonzalo Vecina: Maior legado do SUS foi participar do processo de civilização do Brasil
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Gonzalo Vecina: Maior legado do SUS foi participar do processo de civilização do Brasil

Gonzalo Vecina, fundador da Anvisa e idealizador do SUS, reflete sobre avanços, desafios e o legado do sistema na saúde e na democracia brasileiras
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Gonzalo Vecina é fundador e foi um dos idealizadores do Sistema Único de Saúde (SUS) (Foto: Arquivo Pessoal/Reprodução)
Foto: Arquivo Pessoal/Reprodução Gonzalo Vecina é fundador e foi um dos idealizadores do Sistema Único de Saúde (SUS)

O médico sanitarista Gonzalo Vecina é uma das figuras mais importantes quando se pensa na história e na defesa do Sistema Único de Saúde (SUS). Tem seu currículo repleto de feitos: participou da 8ª Conferência Nacional de Saúde e foi um dos idealizadores do Sistema Único de Saúde (SUS) na Constituição de 1988.

É fundador da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), onde também foi presidente. Também foi secretário municipal de Saúde da cidade de São Paulo e superintendente do Hospital Sírio-Libanês.

O médico ganhou novo destaque durante a pandemia da Covid-19, quando, através dos meios de comunicação, ajudou a traduzir o desconhecido: explicava o vírus, detalhava os riscos, acompanhava a corrida das vacinas e apontava falhas de quem conduzia o País em meio à crise.

Em entrevista ao O POVO, Vecina reflete sobre a criação, os desafios e o legado do SUS em suas três décadas e meia de existência. Fala sobre a importância da democracia e reforça sua convicção de que o SUS tem sido peça-chave no processo de civilização da sociedade brasileira.

NOTAS:

  • Nessa sexta-feira, 19 de setembro, o Sistema Único de Saúde (SUS) celebrou 35 anos de existência.
  • Seu desejo de ser médico nasceu do exemplo do tio, primeiro formado da família, que havia montado um centro cirúrgico improvisado nos fundos da padaria de seu avô, onde realizava cirurgias em animais.

O POVO: Antes da criação oficial do SUS, ainda na década de 1970, quais foram os movimentos que pavimentaram esse caminho?

Gonzalo: Quando entrei na faculdade, em 1972, a gente já discutia e lutava para que o Brasil tivesse um sistema de atenção à saúde de base universal, que não precisasse ser pago, mas que fosse coberto pela arrecadação de impostos.

A década de 70 (1970) foi muito importante porque era um período de recrudescimento da ditadura. O governo [de Emílio] Médici foi o que mais matou, prendeu e torturou brasileiros nesse período. E, mesmo assim, a gente começou a sonhar com um sistema de saúde de base universal. Em 1976 foi criado o Centro Brasileiro de Estudos em Saúde (Cebes), e, um pouco mais à frente, em 1979, surgiu a Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco).

Essas bases da luta foram consolidadas e eclodiram em 1980, na 8ª Conferência Nacional de Saúde, quando reunimos 5 mil pessoas em Brasília para discutir os princípios de um sistema único de saúde. Um sistema que tinha que ser para todos. Lembrando que quase 40% da população brasileira eram indigentes, não tinham trabalho formal e nem plano de saúde.

O Brasil se inspirou no modelo do sistema de saúde da Inglaterra, mas nós acrescentamos essa questão do controle social, que consiste em ter, nos governos federal, estaduais e municipais, conselhos de saúde compostos pela população, pelos trabalhadores de saúde e pelos gestores. Essa é uma criação genuinamente brasileira, e que tem dado muito resultado.

O POVO: O que aconteceu entre a 8ª Conferência Nacional de Saúde e a formalização do SUS em 1988?

Gonzalo: Veja, nós lutamos muito para convencer a [Assembleia] Constituinte. Tínhamos muitos deputados a favor do nosso sonho do SUS, mas foi preciso levar isso a uma discussão contínua.

Em 1987, já na década de 1980, demos muitos passos para chegar ao SUS. O principal foi a oitava conferência nacional de saúde. Mas o Inamps já começava a ser desmontado e, em 1987, o presidente Sarney publicou um decreto que criou o Sistema Unificado e Descentralizado de Saúde (SUDS). O SUDS começou a funcionar ainda naquele ano. Ele já era, de fato, um pré-SUS, com universalização do atendimento, e tinha todas as características do SUS.

O Brasil passou então por uma grande disputa na Constituinte para garantir que o SUS fosse criado com essas características. E foi um sucesso. Ficamos até surpresos com a receptividade da sociedade. Não houve vencedores nem perdedores; foi criada uma vontade coletiva dentro da Constituição.

O POVO: Quais foram os maiores obstáculos após a criação do SUS?

Gonzalo: Aí veio a luta pelo financiamento. O SUS foi criado, começa a funcionar logo após a promulgação das Leis 8.080 e 8.142, em 1990, que regulamentam os artigos 196 a 200 da Constituição Brasileira.

Mas o financiamento só começou a ser fortalecido em 2000, com uma emenda constitucional que determinou que os municípios destinassem 15% da receita bruta e os estados 12%. O Governo Federal, infelizmente, na época de Fernando Henrique, não aceitou o que queríamos, que era 10% da Receita Federal. Então, o Governo Federal continuou a aplicar o valor do ano anterior, corrigido pela inflação, e isso se manteve até 2014.

Somente em 2014, no governo Dilma Rousseff, foi aprovada uma nova emenda constitucional que estabeleceu 15% da receita corrente líquida para a saúde do Governo Federal. Foi uma solução importante, mas de curta duração, porque logo em seguida houve o golpe que derrubou Dilma. E a primeira medida do governo pós-golpe foi promulgar a Emenda Constitucional 95, que congelou os gastos públicos no Brasil por 20 anos. E aí a saúde volta a sofrer um desfinanciamento muito grave.

É quando a gente tem uma queda na cobertura vacinal. A economia por conta da Emenda Constitucional 95 foi na área da vacinação, no controle de infecções sexualmente transmissíveis (ISTs) e segurança alimentar. Como consequência, sofremos uma grande regressão no Brasil. Tivemos fome, desnutrição grave e perda da cobertura vacinal. Nós, que tínhamos uma cobertura vacinal de 95%, caímos para 60% até 2022. Foi muito difícil.

O POVO: Esse período também coincidiu com a pandemia…

Gonzalo: A pandemia foi um momento realmente terrível. O governo não se preocupou em buscar vacinas. Achavam que a gente atravessaria a pandemia adquirindo a doença naturalmente. Tivemos 200 mil mortos de janeiro a julho e, de julho a dezembro, outros 400 mil mortos.

Na verdade, a estimativa que fazemos é de 1 milhão de mortes, porque muita gente foi enterrada com diagnóstico de síndrome respiratória aguda grave. Somos o terceiro país em número absoluto de óbitos, apesar de ter a décima maior população do mundo. Se não fosse a Fiocruz e a Fundação Butantan, não teríamos tido vacinas. Vacinas que conseguiram evitar milhões de mortes a mais.

O POVO: A pandemia nos ensinou algo, em relação a estratégia em saúde?

Gonzalo: Não há dúvida de que deveríamos ter aprendido muito com a pandemia, principalmente para evitar a próxima ou, pelo menos, para que ela não nos pegue tão desprevenidos quanto esta nos pegou.
Temos discutido bastante com o Governo Federal que o Brasil deveria constituir um órgão nacional que acompanhe o surgimento de novos patógenos. É um órgão de vigilância epidemiológica, acompanhando o que acontece no País. Alguns lugares, como os Estados Unidos, da África e da Europa, já têm algo chamado Centro de Controle de Doenças, o CDC.

A intervenção continuaria sendo do Ministério da Saúde. Esse órgão teria a responsabilidade de monitorar e identificar o surgimento de novos patógenos em nossos seis biomas. Cada um deles abriga uma imensidão de micro-organismos, muitos ainda desconhecidos. E, com a pressão humana sobre esses ambientes, esses micro-organismos também estão sob pressão.

Foi esse tipo de pressão ecológica, lá na China, que originou a pandemia da Covid-19. À medida que o homem foi ocupando cada vez mais as áreas de habitação do morcego, esses animais ficaram sob pressão. Os micro-organismos que viviam neles, como o SARS-CoV-2, procuraram um novo hospedeiro — e encontraram no homem.

Por isso, precisamos olhar com atenção para nossos biomas, identificar sinais e investigar as causas. Por exemplo, se bichos estão morrendo de forma incomum, algo está acontecendo, e é preciso acompanhar. Esse tipo de órgão de inteligência é algo que precisamos acordar para a necessidade de criar.

O POVO: Como o senhor avalia a contribuição da Anvisa para a consolidação da saúde pública no Brasil?

Gonzalo: A Anvisa foi criada em abril de 1999, então ela já tem 25 anos de atuação e tem sido muito importante para o Brasil nesse tempo todo. Foi responsável, por exemplo, pela criação dos medicamentos genéricos, pela obrigatoriedade da rotulagem nutricional — que antes não existia no País — e pelo controle de substâncias usadas na alimentação, como as gorduras trans, que passaram a ser proibidas.

Um dos maiores sucessos da agência foi no combate ao tabagismo. Quando começaram as medidas de controle do cigarro, com aquelas fotos, quase 35% da população brasileira fumava; hoje esse índice caiu para menos de 10%. Claro que não foi apenas pela Anvisa — foi o resultado de várias ações, como a proibição do fumo em locais públicos. Antigamente se fumava em praticamente qualquer lugar, até mesmo em salas de aula.

A Anvisa teve um papel muito importante para a saúde pública brasileira nos últimos anos. Embora a função vigilância sanitária já existisse no Brasil desde 1820, com a criação da Capitania de Saúde dos Portos. Porém, a Anvisa dinamizou esse processo e projetou o nome do Brasil internacionalmente.

O POVO: Qual seria o maior legado do SUS após 35 anos de existência?

Gonzalo: A construção de uma sociedade mais igual. O maior problema do Brasil é a desigualdade social. Nós vivemos em sociedade — o ser humano foi condenado a isso. Mas é aceitável viver em uma sociedade onde quem tem dinheiro sobrevive e quem não tem, morre?

Eu moro no Alto da Lapa, em São Paulo, um bairro rico onde a expectativa de vida ao nascer é de 85 anos. Na mesma cidade, está o bairro Cidade Tiradentes. Lá, a expectativa de vida é de 65 anos — uma diferença de 20 anos. Como explicar essa diferença? A resposta é simples: pobreza.

Outro exemplo é a mortalidade materna no Brasil: entre mulheres negras, ela é três vezes maior do que entre mulheres brancas. Como é aceitável uma coisa dessas num país que quer ser civilizado?
Então o principal legado do SUS nesses 35 anos foi participar do processo de civilização da sociedade brasileira. O atual cenário está em conformidade com o que foi sonhado na 8ª Conferência de Saúde, claro que ainda estamos longe de alcançá-lo plenamente, mas avançamos bastante.

O POVO: Como o modelo de atenção à saúde brasileiro se compara ao de outros países?

Gonzalo: A lição mais importante do SUS é justamente a universalização da assistência à saúde, que se tornou um instrumento de construção da igualdade. Quando a gente tem oportunidade de falar com pessoas de outros países — inclusive mais desenvolvidos, como a Inglaterra — percebemos o quanto o Brasil avançou graças ao modelo de atenção que temos hoje na atenção à saúde.

A saúde é um dos direitos que a Constituição de 1988 estabeleceu. Não podemos deixar de lado a importância de termos uma Constituição cidadã, ou seja, um ordenamento jurídico que diz como a sociedade deve se comportar em relação aos seus cidadãos.

Quando vivemos momentos como esse, em que estamos discutindo a civilização brasileira e lembrando que um grupo de autoridades tentou dar um golpe de Estado para transformar o Brasil em uma ditadura, precisamos reforçar a importância da democracia. É só em uma democracia que se constrói igualdade.

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