O médico sanitarista Gonzalo Vecina é uma das figuras mais importantes quando se pensa na história e na defesa do Sistema Único de Saúde (SUS). Tem seu currículo repleto de feitos: participou da 8ª Conferência Nacional de Saúde e foi um dos idealizadores do Sistema Único de Saúde (SUS) na Constituição de 1988.
É fundador da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), onde também foi presidente. Também foi secretário municipal de Saúde da cidade de São Paulo e superintendente do Hospital Sírio-Libanês.
O médico ganhou novo destaque durante a pandemia da Covid-19, quando, através dos meios de comunicação, ajudou a traduzir o desconhecido: explicava o vírus, detalhava os riscos, acompanhava a corrida das vacinas e apontava falhas de quem conduzia o País em meio à crise.
Em entrevista ao O POVO, Vecina reflete sobre a criação, os desafios e o legado do SUS em suas três décadas e meia de existência. Fala sobre a importância da democracia e reforça sua convicção de que o SUS tem sido peça-chave no processo de civilização da sociedade brasileira.
NOTAS:
O POVO: Antes da criação oficial do SUS, ainda na década de 1970, quais foram os movimentos que pavimentaram esse caminho?
Gonzalo: Quando entrei na faculdade, em 1972, a gente já discutia e lutava para que o Brasil tivesse um sistema de atenção à saúde de base universal, que não precisasse ser pago, mas que fosse coberto pela arrecadação de impostos.
A década de 70 (1970) foi muito importante porque era um período de recrudescimento da ditadura. O governo [de Emílio] Médici foi o que mais matou, prendeu e torturou brasileiros nesse período. E, mesmo assim, a gente começou a sonhar com um sistema de saúde de base universal. Em 1976 foi criado o Centro Brasileiro de Estudos em Saúde (Cebes), e, um pouco mais à frente, em 1979, surgiu a Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco).
Essas bases da luta foram consolidadas e eclodiram em 1980, na 8ª Conferência Nacional de Saúde, quando reunimos 5 mil pessoas em Brasília para discutir os princípios de um sistema único de saúde. Um sistema que tinha que ser para todos. Lembrando que quase 40% da população brasileira eram indigentes, não tinham trabalho formal e nem plano de saúde.
O Brasil se inspirou no modelo do sistema de saúde da Inglaterra, mas nós acrescentamos essa questão do controle social, que consiste em ter, nos governos federal, estaduais e municipais, conselhos de saúde compostos pela população, pelos trabalhadores de saúde e pelos gestores. Essa é uma criação genuinamente brasileira, e que tem dado muito resultado.
O POVO: O que aconteceu entre a 8ª Conferência Nacional de Saúde e a formalização do SUS em 1988?
Gonzalo: Veja, nós lutamos muito para convencer a [Assembleia] Constituinte. Tínhamos muitos deputados a favor do nosso sonho do SUS, mas foi preciso levar isso a uma discussão contínua.
Em 1987, já na década de 1980, demos muitos passos para chegar ao SUS. O principal foi a oitava conferência nacional de saúde. Mas o Inamps já começava a ser desmontado e, em 1987, o presidente Sarney publicou um decreto que criou o Sistema Unificado e Descentralizado de Saúde (SUDS). O SUDS começou a funcionar ainda naquele ano. Ele já era, de fato, um pré-SUS, com universalização do atendimento, e tinha todas as características do SUS.
O Brasil passou então por uma grande disputa na Constituinte para garantir que o SUS fosse criado com essas características. E foi um sucesso. Ficamos até surpresos com a receptividade da sociedade. Não houve vencedores nem perdedores; foi criada uma vontade coletiva dentro da Constituição.
O POVO: Quais foram os maiores obstáculos após a criação do SUS?
Gonzalo: Aí veio a luta pelo financiamento. O SUS foi criado, começa a funcionar logo após a promulgação das Leis 8.080 e 8.142, em 1990, que regulamentam os artigos 196 a 200 da Constituição Brasileira.
Mas o financiamento só começou a ser fortalecido em 2000, com uma emenda constitucional que determinou que os municípios destinassem 15% da receita bruta e os estados 12%. O Governo Federal, infelizmente, na época de Fernando Henrique, não aceitou o que queríamos, que era 10% da Receita Federal. Então, o Governo Federal continuou a aplicar o valor do ano anterior, corrigido pela inflação, e isso se manteve até 2014.
Somente em 2014, no governo Dilma Rousseff, foi aprovada uma nova emenda constitucional que estabeleceu 15% da receita corrente líquida para a saúde do Governo Federal. Foi uma solução importante, mas de curta duração, porque logo em seguida houve o golpe que derrubou Dilma. E a primeira medida do governo pós-golpe foi promulgar a Emenda Constitucional 95, que congelou os gastos públicos no Brasil por 20 anos. E aí a saúde volta a sofrer um desfinanciamento muito grave.
É quando a gente tem uma queda na cobertura vacinal. A economia por conta da Emenda Constitucional 95 foi na área da vacinação, no controle de infecções sexualmente transmissíveis (ISTs) e segurança alimentar. Como consequência, sofremos uma grande regressão no Brasil. Tivemos fome, desnutrição grave e perda da cobertura vacinal. Nós, que tínhamos uma cobertura vacinal de 95%, caímos para 60% até 2022. Foi muito difícil.
O POVO: Esse período também coincidiu com a pandemia…
Gonzalo: A pandemia foi um momento realmente terrível. O governo não se preocupou em buscar vacinas. Achavam que a gente atravessaria a pandemia adquirindo a doença naturalmente. Tivemos 200 mil mortos de janeiro a julho e, de julho a dezembro, outros 400 mil mortos.
Na verdade, a estimativa que fazemos é de 1 milhão de mortes, porque muita gente foi enterrada com diagnóstico de síndrome respiratória aguda grave. Somos o terceiro país em número absoluto de óbitos, apesar de ter a décima maior população do mundo. Se não fosse a Fiocruz e a Fundação Butantan, não teríamos tido vacinas. Vacinas que conseguiram evitar milhões de mortes a mais.
O POVO: A pandemia nos ensinou algo, em relação a estratégia em saúde?
Gonzalo: Não há dúvida de que deveríamos ter aprendido muito com a pandemia, principalmente para evitar a próxima ou, pelo menos, para que ela não nos pegue tão desprevenidos quanto esta nos pegou.
Temos discutido bastante com o Governo Federal que o Brasil deveria constituir um órgão nacional que acompanhe o surgimento de novos patógenos. É um órgão de vigilância epidemiológica, acompanhando o que acontece no País. Alguns lugares, como os Estados Unidos, da África e da Europa, já têm algo chamado Centro de Controle de Doenças, o CDC.
A intervenção continuaria sendo do Ministério da Saúde. Esse órgão teria a responsabilidade de monitorar e identificar o surgimento de novos patógenos em nossos seis biomas. Cada um deles abriga uma imensidão de micro-organismos, muitos ainda desconhecidos. E, com a pressão humana sobre esses ambientes, esses micro-organismos também estão sob pressão.
Foi esse tipo de pressão ecológica, lá na China, que originou a pandemia da Covid-19. À medida que o homem foi ocupando cada vez mais as áreas de habitação do morcego, esses animais ficaram sob pressão. Os micro-organismos que viviam neles, como o SARS-CoV-2, procuraram um novo hospedeiro — e encontraram no homem.
Por isso, precisamos olhar com atenção para nossos biomas, identificar sinais e investigar as causas. Por exemplo, se bichos estão morrendo de forma incomum, algo está acontecendo, e é preciso acompanhar. Esse tipo de órgão de inteligência é algo que precisamos acordar para a necessidade de criar.
O POVO: Como o senhor avalia a contribuição da Anvisa para a consolidação da saúde pública no Brasil?
Gonzalo: A Anvisa foi criada em abril de 1999, então ela já tem 25 anos de atuação e tem sido muito importante para o Brasil nesse tempo todo. Foi responsável, por exemplo, pela criação dos medicamentos genéricos, pela obrigatoriedade da rotulagem nutricional — que antes não existia no País — e pelo controle de substâncias usadas na alimentação, como as gorduras trans, que passaram a ser proibidas.
Um dos maiores sucessos da agência foi no combate ao tabagismo. Quando começaram as medidas de controle do cigarro, com aquelas fotos, quase 35% da população brasileira fumava; hoje esse índice caiu para menos de 10%. Claro que não foi apenas pela Anvisa — foi o resultado de várias ações, como a proibição do fumo em locais públicos. Antigamente se fumava em praticamente qualquer lugar, até mesmo em salas de aula.
A Anvisa teve um papel muito importante para a saúde pública brasileira nos últimos anos. Embora a função vigilância sanitária já existisse no Brasil desde 1820, com a criação da Capitania de Saúde dos Portos. Porém, a Anvisa dinamizou esse processo e projetou o nome do Brasil internacionalmente.
O POVO: Qual seria o maior legado do SUS após 35 anos de existência?
Gonzalo: A construção de uma sociedade mais igual. O maior problema do Brasil é a desigualdade social. Nós vivemos em sociedade — o ser humano foi condenado a isso. Mas é aceitável viver em uma sociedade onde quem tem dinheiro sobrevive e quem não tem, morre?
Eu moro no Alto da Lapa, em São Paulo, um bairro rico onde a expectativa de vida ao nascer é de 85 anos. Na mesma cidade, está o bairro Cidade Tiradentes. Lá, a expectativa de vida é de 65 anos — uma diferença de 20 anos. Como explicar essa diferença? A resposta é simples: pobreza.
Outro exemplo é a mortalidade materna no Brasil: entre mulheres negras, ela é três vezes maior do que entre mulheres brancas. Como é aceitável uma coisa dessas num país que quer ser civilizado?
Então o principal legado do SUS nesses 35 anos foi participar do processo de civilização da sociedade brasileira. O atual cenário está em conformidade com o que foi sonhado na 8ª Conferência de Saúde, claro que ainda estamos longe de alcançá-lo plenamente, mas avançamos bastante.
O POVO: Como o modelo de atenção à saúde brasileiro se compara ao de outros países?
Gonzalo: A lição mais importante do SUS é justamente a universalização da assistência à saúde, que se tornou um instrumento de construção da igualdade. Quando a gente tem oportunidade de falar com pessoas de outros países — inclusive mais desenvolvidos, como a Inglaterra — percebemos o quanto o Brasil avançou graças ao modelo de atenção que temos hoje na atenção à saúde.
A saúde é um dos direitos que a Constituição de 1988 estabeleceu. Não podemos deixar de lado a importância de termos uma Constituição cidadã, ou seja, um ordenamento jurídico que diz como a sociedade deve se comportar em relação aos seus cidadãos.
Quando vivemos momentos como esse, em que estamos discutindo a civilização brasileira e lembrando que um grupo de autoridades tentou dar um golpe de Estado para transformar o Brasil em uma ditadura, precisamos reforçar a importância da democracia. É só em uma democracia que se constrói igualdade.