Natural de Itapipoca, no Norte cearense, Juliana Barroso teve recentemente a carreira marcada pelo pioneirismo. Em agosto deste ano ela assumiu a Superintendência de Pesquisa e Estratégia de Segurança Pública (Supesp) — se tornando a primeira mulher à frente de uma vinculada da Secretária de Segurança Pública e Defesa Social (SSPDS) e dando um passo simbólico em sua luta por representatividade.
Filha de pai comerciante e de mãe pedagoga, a superintendente é socióloga formada pela Universidade de Brasília (UnB) e tem no currículo passagem por órgãos como a Secretaria Nacional de Segurança Pública do Ministério da Justiça e Segurança Pública (Senasp/MJSP) e a Secretaria de Segurança Pública do Rio de Janeiro. Também contribuiu com o Governo do Pará, estado onde viveu entre 2019 e 2024.
No ano passado regressou ao Ceará, após 30 anos morando fora, e trouxe na bagagem uma base sólida de experiências para integrar o quadro da Supesp como diretora de Pesquisa e Avaliação de Políticas de Segurança Pública. Trabalho deu tão certo que foi convidada a assumir o comando da superintendência.
Em conversa com O POVO, Barroso fala sobre os desafios de conduzir o órgão, vislumbra o legado que deseja deixar e reflete sobre o caminho que sua liderança abre para outras mulheres.
O POVO - A senhora é a primeira mulher a frente de uma vinculada da SSPDS. Por qual razão acredita que isso só aconteceu agora? Por que houve essa demora quanto mulheres assumindo cargos de segurança?
Juliana Barroso - Eu acho que isso [demora] tem a ver com essa questão da cultura organizacional e [o avanço] tem a ver com o próprio movimento feminista, né? Que é um movimento feminista que começa lá na década de 60, 70 [...] Acho que faz parte de um contexto histórico, a gente tem um governo que tem a participação feminina, temos várias secretárias mulheres no poder e eu acho que é uma coisa sem volta. Eu espero que seja um movimento sem volta. Não da gente ocupar todos os espaços, mas da gente ter um espaço de incidência nas políticas públicas governamentais. Eu acho super importante a gente trazer esse olhar para as políticas públicas.
OP - E qual a importância de ter esse olhar feminino à frente de uma pasta de segurança? O que muda, na sua concepção?
Eu posso dizer que, para além da sensibilidade, a gente ouve mais. A gente dialoga mais, a gente compartilha mais e eu acho que isso na segurança pública tem uma importância quando a gente tenta entender o sistema e a própria violência, a própria criminalidade, né? Então, por exemplo, eu fico às vezes olhando as discussões e às vezes eu faço uma provocação, aí todo mundo: É verdade, não tinha pensado nisso. [Dá] um outro ponto de vista. Então, eu acho que a gente, nesses lugares de poder, a gente tem que pensar políticas públicas também olhando com esse viés, daquilo que não é posto.
Temos que colocar na mesa e olhar também como é que isso nos afeta, nos afeta enquanto sociedade, nos afeta enquanto mulheres. Pois geralmente essas políticas públicas são pensadas por homens, e a gente nunca tá envolvida na formulação das políticas públicas. E você ter uma mulher nessa parte de formulação, significa que pelo menos você vai ter um olhar diferenciado.
OP - Para a superintendência em si, o que a senhora pretende trazer de novo, de diferente?
Juliana - Eu criei uma portaria pra gente pensar promoção de igualdade de gênero e racial aqui dentro, porque eu gostaria muito e já propus isso, o secretário já topou, mas a gente ainda não levou isso para o governador. A Supesp é um órgão hoje que ela não tem servidores efetivos, são todos comissionados ou terceirizados ou colaboradores. Para a gente ter uma sustentabilidade dessa política pública, baseada em evidências, baseada em dados, a gente precisa também pensar um pouco na Supesp a longo prazo.
E aí eu tenho proposto um concurso pra servidores efetivos. Antes de pensar no concurso, já pensei como é que eu vou produzir cotas para as mulheres, entendeu? Como é que eu vou pensar políticas de letramento. [...] Porque eu quero que toda vida que alguém ali da estatística puxar um dado sobre [recorte] racial, que ele tenha consciência por que é importante a gente pensar políticas públicas a partir desse recorte. Quando eu peço somente crimes praticados contra mulheres, eu quero que o pessoal que extraia o dado, que não sabe nem por que eu peço, tenha consciência do por quê eu tô pedindo a extração só de crimes praticados contra as mulheres. As pessoas têm que se antenar a nisso. [...] Eu tenho o maior orgulho de dizer que eu tenho a metade das diretorias ocupadas por negros e homossexuais.
Então é pensar essas coisas que têm um porquê, né? Essas pessoas precisam ter também representatividade. Então, pensando nisso, eu criei esse grupo e a gente tá pensando num plano estratégico para Supesp, pensando nesses dois ganchos, a questão da promoção da equidade de gênero e racial. É uma inovação para Supesp, eu diria até para o sistema de segurança pública, mas eu só tô fazendo o que tá na lei [...] Não sei se um homem teria essa mesma sensibilidade. Meu compromisso é esse, né? É de fazer uma gestão voltada para essa questão da equidade de gênero, uma equidade racial. Eu acho que são políticas de reparo históricos e que a gente precisa tá de fato comprometido com isso, não basta apenas ser.
OP- E quando a gente fala de representatividade, a senhora acredita que a sua chegada na superintendência vai estar abrindo caminhos para que outras mulheres possam seguir à frente de cargos superiores dentro da Secretaria de Segurança?
Juliana - Eu espero. Quando me falaram que eu era a primeira mulher a assumir uma vinculada, isso pesou tanto, eu disse: "Caramba, eu não posso errar". Aí eu disse: "Não, gente, eu vou errar porque eu sou humana, né?". Mas assim, me põe uma responsabilidade maior, porque eu sei o que significa isso. Esses dias eu fui na Ciopaer, que estava completando 30 anos, e é muito emblemática a fotografia [do evento onde ela aparece], era um palco montado e eu era a única mulher de 25 homens.
E aí uma servidora daqui, policial, mandou mensagem para mim: "Doutora, fiquei tão orgulhosa da senhora tá lá em cima. Nossa. É de uma representatividade para a gente". Eu não esperava aquilo, ela não tinha o porquê me falar aquilo, entendeu? Mas eu achei assim, caramba, é isso, é esse lugar que eu tô ocupando hoje. Então, eu tenho uma responsabilidade, de fazer direito o que eu me propus a fazer.
OP - Qual tem sido o maior desafio?
Juliana - Tem tantos. Hoje para mim, assim, tem o profissional e tem o pessoal, né? O pessoal é que sou como outra mulher qualquer. Eu tenho filho, eu sou mãe solo, eu não tenho rede. Então, trabalhar em um espaço desse, em um órgão desse que tem cerimônias de formatura, cerimônias que são à noite, que demoram, para mim é assim um desafio. É fazer as coisas, as representatividades e cuidar da casa e cuidar do filho e fazer com que nada falte para ele, com que não haja atraso na rotina dele por conta de uma decisão minha de assumir um cargo. E tem os desafios profissionais, como cada vez mais colocar a ciência a favor das políticas públicas.
Eu acho que hoje eu tenho muita sorte, a gente tem uma gestão muito portada por evidências [...] Mas foi uma conjunção que me fez aceitar o desafio de tá à frente de uma pasta dessa. Porque de fato eu quero que o que a gente produz aqui incida. Incida no tipo de policiamento que tá lá na área, incida em uma melhor resposta da polícia militar. [...] São essas coisas que me provocam e são desafiadoras.
OP - A senhora assumiu recentemente, mas nesse tempo já sentiu algum olhar de preconceito?
Juliana - A gente não tá imune a isso, né? [...] Eu acho que a maturidade ela me deu uma boa bagagem para lidar com isso. Eu vou te dizer que quando eu era muito nova, eu sempre ocupei espaços também de liderança. Eu assumi um cargo muito alto no Governo Federal quando eu tinha 26 anos de idade. Naquela altura, eu não tinha noção das violências [de genêro] que eu passava. [...] E eu sobrevivi, né?
Hoje eu sei exatamente quais são as brigas que eu tenho que comprar. Aquelas que valem a pena. As outras assim, eu vou me moldando de acordo com a ocasião, né? Porque isso [violências de genêro] acontece em eventos, na portaria, quando a gente chega em outros órgãos [perguntam] "Mas você tem certeza que você tem reunião?", sim, tenho certeza. Ai eu imediatamente também faço o meu papel, entendeu? Mas assim, hoje eu já não me estresso mais. Então eu acho que a maturidade me deu mecanismos para lidar com isso, que ainda é presente na nossa sociedade.
OP- No futuro, quando a senhora olhar para trás, o que vai desejar ter deixado na superintendência?
Juliana - Eu quero deixar uma superintendência fortalecida, preocupada com aquilo que é produzido, com a qualidade do que é produzido, para a gente não se perder no meio do caminho. Eu gostaria de trilhar esse caminho, assim, do fortalecimento da Supesp e de uma maior incidência nessa elaboração de políticas públicas. Esse é o principal legado que eu quero deixar.