Na última quarta-feira, 15, enquanto centenas de milhares de pessoas tomaram as ruas do Brasil em protesto contra os cortes na educação, do outro do lado do oceano, o ator e diretor cearense Silvero Pereira valeu-se do tapete vermelho do Festival de Cinema de Cannes para também fazer política. Só que à sua maneira.
Integrante do elenco principal de Bacurau, único representante brasileiro na disputa pela Palma de Ouro deste ano, Silvero subiu as escadarias do Grand Théàtre Lumière para a sessão de gala do filme a bordo de Gisele Almodóvar, sua persona feminina.
No elenco do longa, dirigido pelos pernambucanos Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, Silvero está na companhia de Sonia Braga e do alemão Udo Kier. Tido pela crítica especializada como uma ode à resistência cultural e política, Bacurau se passa num pequeno lugarejo nordestino de um Brasil distópico e violento, num futuro não muito distante. Nele, Silvero dá vida a Lunga, uma justiceira trans, misto de heroína e bandida, e personificação da fúria dos habitantes do local.
Nesta entrevista exclusiva ao O POVO, Silvero fala da construção da personagem, da relação do filme com o atual momento brasileiro e explica porque foi necessário que Gisele Almodóvar desfilasse pela Croisette.
O POVO: Como surgiu a oportunidade de integrar o elenco principal de Bacurau?
Silvero Pereira: Em dezembro de 2017, sentei para jantar com Kleber (Mendonça Filho), Juliano (Dornelles) e Emilie (Lesclaux, a produtora do filme), em São Paulo, e conversávamos sobre a possibilidade de eu integrar o elenco. Trocamos ideias, tirei dúvidas e, um mês depois, confirmaram minha participação. Foi incrível!
OP: Lunga, sua personagem no filme, é uma revolucionária transgênero que age "nas brechas da lei"...
Silvero: Lunga é uma força construída a partir das injustiças políticas, sociais e educacionais. Ela é contra o sistema e acredita que a revolução deve ser feita a partir do momento que acreditamos na nossa força enquanto indivídua em sociedade, respeitando as diferenças e se ajudando mutuamente. Caso isso não ocorra, então Lunga acredita que se deve enfrentar e dizer quem realmente manda no território.
OP: Quais as referências que você usou na construção deste papel?
Silvero: Sou do interior do Ceará, de Mombaça. Logo, minhas referências são a política de cabresto, o oportunismo político e a falta de assistência. Minha maior referência é uma história vivida na pele sobre falta de oportunidades
OP: Por que você decidiu ir de Gisele Almodóvar (alter ego feminino de Silvero) à première e à coletiva de imprensa de Bacurau? Como foi a recepção das pessoas?
Silvero: Gisele também sou eu. Desde pequeno me visto de mulher, porém, por medo, sempre me escondi. Em Cannes foi minha maneira de rasgar a camisa com super "S" (de Super ou de Ser Silvero) e mostrar o orgulho de ser quem sou e que ninguém deve ditar como (o outro) deve ser.
OP: Como se deu a escolha do seu figurino para cruzar o Tapete Vermelho de Cannes?
Silvero: É simples, eu quis me vestir assim. E assim fui feliz. Principalmente, usando um vestido e adereços de cearenses (Lindemberg Fernandes e Soul Padma, respectivamente). Essa foi mais uma oportunidade de dizer a tantas outras (pessoas) que estão com medo de assumir que, de alguma forma, vejam essa referência e tenham coragem de romper a violência de gênero, e vivam a diversidade e a liberdade.
OP: A que se deveu sua opção de usar grifes cearenses?
Silvero: Decido trazer o Ceará comigo. Procurei pessoas, artistas que admiro e quis fazer essa entrada carregando meu Estado junto. Hoje (quinta-feira) fomos eleitos (pelo site norte-americano especializado em estilo feminino Pure Wow) uma das celebridades mais bem-vestidas no Festival de Cannes deste ano, ao lado das atrizes Julianne Moore (que passou pelo tapete vermelho usando uma criação do estilista colombiano radicado em Paris (Haider Ackermann), Tilda Swinton e Selena Gomez (ambas vestindo a grife francesa Louis Vuitton).
OP: Na sua opinião, qual a relação que Bacurau (e de seu personagem no filme) com o momento atual do Brasil?
Silvero: Bacurau é um recorte do Brasil de sempre. Uma panela de pressão social. Tem todas as referências atuais presentes no filme, desde a política de interesses, a educação desconstruída, a arte como ambiente de identidade e os oprimidos como verdadeiros donos de uma nação. Bacurau traz em película a metáfora da frase "O gigante acordou". É um grito de revolução urgente.
OP: Como está sendo a experiência de participar de um dos maiores festivais de cinema do mundo?
Silvero: Cannes está sendo uma experiência surreal. Há anos tudo isso era sonho para mim. Hoje, me vejo forte, potente e mais feliz com minha escolha pelo ofício do teatro, pelos professores que tive, pela família que tenho e pela minha consciência enquanto pessoa num espaço coletivo.