Abordar sexualidade e gênero demanda "tirar a lupa da cisheteronorma". Na perspectiva de Dora Moreira, doutoranda no Programa Interdisciplinar de Pós-graduação de Linguística Aplicada da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), essa mudança se faz necessária para discutir as dissidências. No mês do orgulho LGBTQIA 's, ela conversou com O POVO sobre bissexualidade. A comunicadora social, que pesquisa lutas minoritárias, sonoridades, escrita e corporeidades dissidentes, frisa que não se pode discutir bissexualidade isolada das questões LGBTQI 's de um modo geral.
O POVO - Você acredita que há uma invisibilidade da bissexualidade diante das outras orientações sexuais e dissidências de gênero?
Dora Moreira - A partir de onde se afirma que a bissexualidade não é discutida? Não é discutida por quem? Existem inúmeros textos escritos diariamente por pessoas bissexuais e LGBTQI envolvendo o tema, os congressos de sexualidade e gênero costumam ter mesas que abordam a bissexualidade e publicam artigos tratando do tema em seus anais. Além disso, tal orientação sexual é amplamente debatida e pautada pela grande maioria dos movimentos LGBTS. O que me parece é que não podemos discutir a bissexualidade isolada das questões LGBTQI 's de um modo geral. A bissexualidade tem questões específicas, assim como todas as orientações sexuais e as dissidências de gênero, mas para adentrar nessas especificidades é importante que partamos de uma discussão sobre sexualidade, gênero e dissidências na nossa sociedade.
OP - Dentro do próprio movimento, há algum tipo de "preconceito"?
Dora - O preconceito com a diversidade sexual vem da cisheteronormatividade compulsória e do sistema binário de gênero das sociedades ocidentais, nos quais as pessoas ao nascer são divididas em homem e mulher a partir do órgão que têm no meio de suas pernas. É esse sistema que não respeita as dissidências e, a partir dessa perspectiva, torna ainda mais difícil lidar com pessoas não binárias (que não se identificam nem como homens nem como mulheres) e com pessoas que não têm o desejo eróticoafetivo orientado pelo gênero.
OP - Existe a questão de acharem que são pessoas não resolvidas, ou não confiáveis, ou promíscuas. Porque a estigmatização sobre as pessoas bi é tão fonte?
Dora - O que se percebe é que, para a nossa sociedade, todas as pessoas que estão no espectro da dissidência de gênero, que não se relacionam de acordo com a cisheteronorma, tendem a ser tidas como não confiáveis, promíscuas e não resolvidas. No caso das pessoas não binárias e também das bi/panssexuais, acredito que há uma fissura nesses sistemas que as pessoas cisheterossexuais não costumam ter interesse algum em acessar.
OP - Os bissexuais estão num grau de risco menor que outros LGBTs como gays, lésbicas e pessoas transsexuais?
Dora - É importante pensar de que corpo você está falando ao tentar mensurar grau de risco e vulnerabilidade social. Uma questão que existe na bissexualidade é que, devido à LGBTfobia, as relações cisheterossexuais são mais respeitadas, nos dão mais passagens nas sociedades e é verdade que muitas pessoas bissexuais têm a possibilidade de viver tal relação. Mas isso só é possível para as bissexuais cis. E as bissexuais trans? Mas ao falarmos em vulnerabilidade e grau de risco precisamos partir de uma perspectiva interseccional, onde os marcadores sociais se amalgamam e interferem nisso. Por exemplo, uma pessoa bissexual cisgênero branca não está no mesmo grau de vulnerabilidade que uma pessoa negra trans que é bissexual. É importante atentarmos para os índices de violência quando falamos nesse tema, mas há muitos marcadores além da orientação sexual a serem levados em conta para determinar esse risco.
OP - Em que momento a pessoa consegue se definir como bissexual?
Dora - Aí eu vou fazer aquela pergunta clichê: em que momento a identificação heterossexual chega no processo das pessoas que se autodeterminam como hétero? Ninguém "se descobre gay" em algum momento. São as pessoas cisheterossexuais que em algum momento descobrem que aquela pessoa é gay. Entende? Porque do mesmo modo que ninguém nasce gay e trans, ninguém nasce hétero e cis. Pela sociedade vem a necessidade de a gente se afirmar, de revelar algo, mas a nossa sexualidade é algo construído, é processo de vida, está em constante mutação, não existe um momento. E para abordar esse tema a gente precisa tentar tirar a lupa da cisheteronorma, precisa tentar ao máximo trocar de olhos. Porque as nossas sexualidades, as dissidentes, elas não existem a partir dessa ótica, elas instauram suas próprias óticas. Eu posso te dizer que, na verdade, o momento da identificação bissexual, pra mim, nunca chegou. Porque 'bissexual' é um termo que não dá conta da minha sexualidade. Não é como se uma hora eu tivesse atração e me apaixonasse por "homem" e por "mulher", inclusive porque eu sinto atração e já me apaixonei por pessoas não-binárias. E isso é algo que me acompanha desde criança, mas também é algo que eu vou podendo viver e dar vazão a partir do meu processo de vida, a partir da descolonização e das tentativas de libertar meu próprio corpo, meu próprio desejo e meu próprio afeto daquilo que me é imposto, tentando não massacrá-lo de um lado nem de outro.
OP - Qual a importância pessoal e também social de se afirmar como bissexual dentro dessa perspectiva de orgulho e autoafirmação?
Dora - A importância de eu me afirmar bissexual, ainda que essa palavra não dê conta da minha sexualidade, é a importância de eu poder existir. Tem uma escritora que me é muito cara, a Audre Lorde, que fala muito da importância da autodeterminação. Porque nós seremos enquadrados em alguma coisa, e o que é a norma - branca, cisheteronormativa -, é tida como natural e não é nem nomeada. E aí vejo que a importância pessoal e social não se separam, porque me fortaleço muito também em LGBTs que "vivem no armário", mas que têm para si e para seus pares o que são e como amam. Acho importante a gente não ter essa fissura em tirar ninguém do armário, em respeitar as negociações e as relações das pessoas com sua própria sexualidade. Acredito que essa seja uma demanda da cisheteronorma. O que quero dizer também é que eu não preciso me afirmar bissexual dentro dos movimentos LGBTs, não preciso me afirmar sobre nenhuma outra identidade sexual. Eu me afirmo bissexual junto com as bichas, com as gays, com as sapatão, com as hétera, com as não-binária, com os homens trans, com as travesti, e é assim que a gente luta contra a cisheteronormatividade. Porque o que é importante que se entenda quando falamos de dissidências sexuais e de gênero é que nós estamos sendo assassinadas, estupradas, interditadas. E pra gente, pra quem tá nessa luta, pra quem vive e investiga essas questões, o importante é que estejamos vivas - vivonas - e conseguindo manter nossa sanidade mental à revelia do que reservaram para nós.
OP - Tendo em vista que estamos no mês do orgulho LGBT, como o movimento de forma geral se apropria do orgulho para se firmar e reivindicar direitos enquanto comunidade?
Dora - Eu vejo a questão do orgulho assim: temos orgulho porque nos ensinaram a ter vergonha e nós nos recusamos, e seguimos nos recusando, a aprender a nos envergonhar. É curioso ver o incômodo da cisheteronorma com as manifestações LGBTQI 's nas ruas. Porque ela quer deslegitimar nosso movimento na rua, afirmando que estar na rua em festa e se amando não é ferramenta de luta. Como se fosse preciso que estivéssemos com cartazes de projeto de lei na rua para que a nossa luta fosse consistente.
OP - Há invisibilidade da bissexualidade em outras camadas sociais, fora dos movimentos LGBTS? A bissexualidade é mais difícil de ser compreendida no pensamento heteronormativo ante outras dissidências?
Dora - Acredito que a invisibilidade das pessoas bissexuais, embora tenha suas particularidades, exista no amplo espectro em que todas as dissidências sexuais e de gênero são invisibilizadas pela cisheteronormatividade. Como a de todas as pessoas LGBTs. Acredito que quando se luta por uma causa dentro do movimento, especialmente quando afirmamos e lutamos pela existência de pessoas trans, a bissexualidade caminha e conquista seu espaço junto. Eu não vejo o movimento ser esquecido dentro das discussões LGBT. A bifobia sistêmica, enquanto questão política, está ligada à heteronormatividade, e não às demais dissidências. Não diria que é mais difícil de ser compreendida, mas acho que ela faz uma ruptura no sistema binário de gênero, porque não é que eu trace tudo, homem ou mulher, não é que hora eu seja hetero, ora eu seja homo, muito menos que eu seja indecisa, que a minha bissexualidade seja algo a ser resolvida.
Glossário
Cisheteronormatividade- normas e práticas sociais que encaixam as pessoas nos pressupostos da heterossexualidade e da cisgeneridade (identificação do sujeito com o gênero ao qual foi designado ao nascer, a partir da
sua genitália).
Dissidência sexual
e de gênero - corpos e práticas que não se encaixam nos pressupostos da cisgeneridade
e da heteronormatividade.
Não-binário - que não se identifica nem com o gênero feminino nem com o gênero masculino.
Sistema binário
de gênero - sistema social que divide as pessoas em homem e mulher.