Natural de Russas, Allan Deberton, 37, sonhou em fazer cinema antes mesmo de o Estado ter uma graduação em audiovisual. Migrou, então, para o Rio de Janeiro, buscou se especializar e, ao longo dos anos, construiu carreira bem-sucedida como diretor e produtor - acumulando importantes prêmios com seus curtas-metragens.
Como tema do primeiro longa-metragem, o cearense elegeu uma personagem real que viveu na cidade de Russas, a incompreendida Pacarrete, uma bailarina aposentada que, até a morte, buscou um novo palco. A obra acaba de se consagrar como grande vencedora do 47° Festival de Cinema de Gramado, ganhando oito prêmios (incluindo melhor filme e direção) e elevando, assim, o audiovisual produzido no Ceará a um novo patamar.
O POVO - Você avalia que essa personagem, uma ferrenha defensora da arte, representou algum tipo de esperança para o público de Gramado?
Allan Deberton - Eu vou repetir uma frase dita pela atriz Marcélia Cartaxo, que diz que está cada vez mais difícil de tocar as pessoas em função desse pessimismo e dessa tristeza do momento que a gente vive. As relações humanas estão cada vez mais distantes e me deixa muito feliz perceber que o filme Pacarrete tornou possível um sentimento maior de empatia entre as pessoas. Houve uma total conexão do público, que é um público bem diverso, pois tem o júri, realizadores, mas também o povo de Gramado, de cidades vizinhas e turistas. Deu para entender o poder do filme de comunicar.
OP - Ainda é difícil para o público em geral conseguir ter dimensão do real papel do cinema? Falo não só para a cultura, mas também para a economia, geração de emprego...
Allan - Hoje se tornou tudo mais panfletário, parece que colocaram o artista como um inimigo da sociedade, muito através da demonização da Lei Rouanet e, com isso, uma extensão para o cinema. É veiculada a imagem do artista como corrupto que usa investimento público para obras que não dão retorno financeiro, de público e com temas "pornográficos", como a crítica que foi feita a Bruna Surfistinha (pelo presidente Jair Bolsonaro), que, na verdade, é um sucesso de bilheteria. Hoje há uma falta de informação sobre o que a classe artística representa em termos de economia, sendo que o audiovisual se sustenta através de contribuição própria. É um setor que cresce, estava crescendo de uma forma muito superior a outros tipos de atividade econômica. Agora a gente está vendo um desmonte fundado em críticas que não são embasadas, numa perseguição ao artista de uma forma massiva e popular, sempre nos criminalizando, de modo que boa parte do brasileiro comum, pelo menos a metade deles, vá contra o valor da cultura, vá contra essa identidade brasileira que foi difícil a gente conseguir até agora.
OP - Pacarrete saiu consagrado de Gramado. Enquanto isso A Vida Invisível, de Karim Aïnouz, é nossa aposta para o Oscar. O cinema cearense vive um ponto de virada?
Allan - O realizador cearense tem esse desejo de estar levando para telas as histórias que são particularmente nossas, mas que são bastante universais. O Karim se ateve as afetividades dele, da infância, do seu núcleo familiar para poder criar A Vida Invisível, que conquistou Cannes, está representando o Brasil no Oscar e acho que vai ter uma ótima bilheteria. Isso reflete a qualidade do nosso cinema por si só. Já Pacarrete, como meu primeiro filme, talvez eu tenha chegado nessa sessão de Gramado com menos expectativa. Sabendo que fizemos um bom trabalho e teríamos alguma repercussão positiva, mas sem a certeza de que iria tocar tão forte nas pessoas, isso dá a sensação de um trabalho bem executado...
OP - O presidente Jair Bolsonaro afirmou que o projeto Transversais (série cearense com temática LGBTQ produzida por Allan) vai "para o saco". Em Gramado, porém, você garantiu que a obra vai, sim, existir. Quais seus planos de financiamento?
Allan - Meu impulso nessa fala foi pra mostrar que, apesar das dificuldades e dos percalços, estamos buscando atingir as metas. Transversais é um desejo meu e do Émerson Maranhão (roteirista, diretor e jornalista do O POVO) porque, na verdade, a gente percebeu a excelente repercussão do curta Aqueles Dois, que embasa a série e a sua importância, inclusive, social, de estar atingindo núcleos vulneráveis, que precisam assistir a aqueles filmes para abrirem um pouco mais a mente. A série Transversais vem desse desejo de contar histórias em cinco episódios feitos especialmente para a TV pública como canal de exibição inicial para atingir ainda mais públicos e, com isso, transformar o valor artístico da obra através da sua informação, tirar o conflito das pessoas e falar sobre o Brasil. São temas muito necessários de serem discutidos, me sinto totalmente entusiasmado em estar executando esse projeto, assim como o Émerson, e é também uma resposta para dizer que a gente não vai desistir de fazer cinema e também provar que a gente está falando sobre amor, esperança, empoderamento, sobre valor humano, muitos assuntos que a gente precisa, ainda mais hoje, seguir discutindo.
OP - Vocês se manifestaram politicamente em Gramado e acabaram sendo hostilizados pelo público, essa reação desanima você a se posicionar?
Allan - Isso me deixou triste, porque estávamos ali a favor da democracia, liberdade de imprensa, valor da cultura, educação, Amazônia. Parecem coisas óbvias, estamos lutando a favor de coisas óbvias. Foi muito estranho em Gramado, a gente estava fazendo um manifesto totalmente pacífico com os realizadores carregando cartazes de filmes que representam o cinema brasileiro e carregando frases contra a ditadura, contra a censura e a favor de um cinema livre. Passando pelo tapete vermelho, a gente percebeu surgir palavras a favor do presidente e começaram a jogar pedras de gelo, restos de comida e copos na gente. Enquanto eu estava me sentindo feliz de estar ali num momento muito especial para minha vida, me veio um sentimento de total tristeza, pensei que poderia estar morrendo ali, bastava alguém tacar uma garrafa de vinho e me atingir, eu podia cair, bater a cabeça, sei lá... Veio uma sensação de que as pessoas ali eram intolerantes, o que nos levou a entender que é uma falta de entendimento da situação, é uma raiva gratuita, é um ódio generalizado. A gente estava representando uma parte da sociedade que acredita na democracia, nas questões humanas e, quando tentam colocar uns contra os outros, é muito perigoso, porque as pessoas podem morrer por causa disso.
OP - Pacarrete traz atrizes veteranas, cuja faixa etária ainda é marginalizada nas telas. Você toma como missão dar protagonismo a essas artistas?
Allan - Não é nada fácil para as veteranas, talvez para quem está constantemente na televisão ou quem tem um aspecto físico da beleza padrão seja mais fácil, mas, quando se fala nas veteranas de Pacarrete, estamos falando de atrizes que precisam estar reforçando o seu valor artístico, precisam estar se reinventando para se mostrarem realmente. A Zezita Matos é uma dama do teatro da Paraíba, a Marcélia Cartaxo é uma grande atriz, ganhou vários prêmios candangos em Brasília, é uma Meryl Streep, a que mais ganhou, e ainda assim ela tem uma vida de bastante dificuldade, não é a todo instante que chegam para ela oferecendo oportunidade de trabalho. Às vezes quando vem oportunidade, são papéis bastante secundários, tentando refletir o que ela já fez, fazendo sempre o papel da nordestina sofrida, da imigrante. Personagens realmente instigantes ela teve de tempos em tempos. Assim como Soia Lira, ela fez A Pedra do Reino, fez minisséries e novelas da Globo, mas a verdade é que ainda é uma desconhecida, o público não conhece essa grande atriz. Todas elas querem se sentir desafiadas.
2020
Ainda participando do calendário de festivais de cinema, Pacarrete deve fazer sua estreia nas salas de cinemas do Brasil a partir de março ou abril do ano que vem.